27. Tantra: “Corvos Sobre O Campo”

Céu azul, campo amarelo
Corvos avançam em nossa direção
E não há porque se assustar
Deixa o medo entrar no seu coração


A Legião Urbana, em sua primeira excursão após a saída do baixista Renato Rocha, precisou do reforço de um time de músicos de apoio para a turnê do álbum As quatro estações, iniciada em 1990. Fred Nascimento, então, foi convocado para tocar violão e, após ir às vias de fato com o baixista Bruno Araújo num ensaio da banda de Brasília, acabou afastado, cedendo lugar a Serginho Serra, ex-Ultraje a Rigor. Mais tarde, seria perdoado e reincorporado ao conjunto para a tour do disco O descobrimento do Brasil (1993), integrando a nova banda de apoio com o baixista Gian Fabra e o tecladista Carlos Trilha.

Logo, as afinidades com Fabra levaram Fred a criar, com o baixista, um conjunto paralelo, iniciativa que ficaria mais e mais séria. A nova banda, intitulada Tantra, contou com as baquetas de Gutje Woortmann, egresso da Plebe Rude, substituído, mais tarde, por Marcelo Wig.

Com essa formação – Nascimento, Fabra e Wig – o Tantra gravou o disco Eles não eram nada (1996), que trazia uma pesada versão para “Tropicália”, contando com participação do próprio Caetano Veloso no clipe, além de outros personagens ligados ao tropicalismo (e para uma análise acadêmica desse registro audiovisual, acesse o artigo cuja referência é: LACERDA, R. S. “Tropicália”: imagens em movimentançãoRevista Brasileira de Estudos da Canção, Natal, n. 2, p. 237-252, 2012).

Porém, o destaque do álbum é mesmo a canção “Corvos Sobre O Campo”, que também ganhou um belo videoclipe. Vamos falar um pouquinho sobre esse clássico esquecido do rock nacional noventista.

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Tantra: projeto despretensioso que acabou gerando belas canções.

“Corvos Sobre O Campo” é um pop-rock com boas guitarras e atmosfera etérea. Composta por Fred e por Gian, a canção tem um refrão contagiante: “Yeah! Yeah! Yeah! / Nada vai durar / As maldades serão / Coisas belas enfim / Nada vai durar tanto assim / Abra os olhos, então / Olha os corvos sobre o campo”.

Dá pra sentir a influência de Legião Urbana na levada e, principalmente, na letra, que passeia por diversas negatividades (falando sobre corvos, temores, pedras, maldades, escuridão e coisas que não vão durar) para extrair, delas, uma placidez que acena para algo futuramente construtivo.

As próprias referências da letra são trágicas. O título da canção é inspirado no quadro Campo de trigo com corvos (1890), de Vincent Van Gogh, concluído semanas antes da morte do pintor holandês:

vincent_van_gogh_1853-1890_-_wheat_field_with_crows_1890

Existe a controvérsia acadêmica a respeito do caráter derradeiro da obra. Em todo caso, é inequívoco que, com ela, Van Gogh quis expressar sentimentos trágicos de finitude e solidão. Para saber mais sobre o quadro, leia o interessante texto do Histeria Coletiva HQ, em seu blog.

O videoclipe de “Corvos Sobre O Campo”, por sua vez, rende tributo a um dos momentos mais sublimes do cinema mundial, na minha opinião. Trata-se da imersão que Akira Kurosawa (1910-1998) fez na obra do pintor holandês, retratada em seu belíssimo Sonhos (1990). Esse filme é, na verdade, uma coleção de oito curta-metragens em que o diretor japonês revive imagens oníricas, de sua infância até a vida adulta. Alguns dos sonhos são, claramente, pesadelos (como os episódios do túnel com fantasmas de combatentes mortos na guerra e o assustador episódio do Monte Fuji em chamas). O episódio com a obra de Van Gogh não chega a assustar, mas tem seus momentos de gravidade.

Ele começa com o sonhador visitando um museu com pinturas de Van Gogh, até se descobrir dentro das obras em exposição. Nesse colorido e bucólico universo, ele procura pelo próprio pintor e o encontra desenhando em um campo de trigo. Quem vive Van Gogh é ninguém menos que o diretor Martin Scorsese, grande admirador da obra de Kurosawa. Após um breve diálogo com o compenetrado e irritadiço artista, o sonhador percorre mais paisagens (sob uma belíssima trilha de Chopin) até encontrar o campo de centeio, donde logo explode uma revoada de corvos. Bem ao feitio da maneira poética como Kurosawa, sempre influenciado por Shakespeare, retrata o trágico!

Assista aqui a esse episódio de Sonhos:

Em seu videoclipe, o Tantra também promove uma imersão na obra de Van Gogh, misturada com outras imagens oníricas, que vão da presença de Pinóquio (!), passando pela criação de uma instalação de arte abstrata, até aceleradas imagens do contraste entre a infância e a terceira idade.


Não é fácil encontrar versões alternativas de “Corvos Sobre O Campo”. Porém, em 2015, Fred Nascimento divulgou uma espécie de EP acústico em que revive várias canções, incluindo a já mencionada “Tropicália” e a própria “Corvos Sobre O Campo”, que abre essa sequência de releituras voz-e-violão. Confira:

6 comentários

  1. Um dos melhores posts,adorei o texto e o vídeo.Quanto a música,desconhecia,meu universo musical se restringe à MPB e ao popular-romântico-setentista,que ouvia quando criança.

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