55. Zé Carreiro e Carreirinho: “Boi Soberano”

Me alembro e tenho saudade,
Do tempo que vai ficando,
Do tempo de boiadeiro,
Que eu vivia viajando.
Eu nunca tinha tristeza
Vivia sempre cantando,
Mês e mês cortando estrada
No meu cavalo ruano.


“Boi Soberano” é uma das modas mais conhecidas nos interiores desse Brasil. A gravação mais famosa é a registrada pela dupla Tião Carreiro & Pardinho, mas sua história remonta a muitos anos antes.

A canção, cantada em primeira pessoa, é enunciada por um boiadeiro que, durante um transporte de 600 bois cuiabanos, testemunha o estouro liderado pelo temido Boi Soberano, em Barretos. “No comércio da cidade, as portas foram fechando / Na rua tinha um menino, decerto estava brincando / Quando ele viu que morria, de susto foi desmaiando / Coitadinho, debruçou na frente do Soberano”. E o que seria uma tragédia (ouça a canção primeiro, caso não a conheça, pois contarei spoilers!), se converte em milagre, com o Boi Soberano protegendo o garoto indefeso de ser pisoteado pelos outros bois. O pai da criança, que a tudo assistia imóvel, toma a decisão após o inesperado evento: “Quando passou a boiada, o boi foi se arretirando / Veio o pai dessa criança e me comprou o Soberano / Esse boi sarvou meu filho, ninguém mata o Soberano”.

A gravação original, que abre este post, consta num compacto de 78 rotações, lançado pela dupla Zé Carreiro e Carreirinho em 1955. Os compositores são Adauto Ezequiel (o próprio Carreirinho), Pedro Lopes de Oliveira (tio do mestre João Miranda) e Izaltino Gonçalves de Paula. Este último tem sua trajetória resgatada num artigo de Graziela Delalibera para o jornal Diário da região, de São José do Rio Preto, cidade natal do compositor. Separei um fragmento que menciona sua composição mais famosa:

“Não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha vitrola, não tinha nada, tocava um violãozinho e cantava uns versos pra juntar a rapaziada.” A primeira música, compôs aos 22 anos, “Penacho”, gravada por Tonico e Tinoco. “Boi Soberano” viria três anos depois, em 1954. Seu Izaltino lembra que, quando decidiu fazer uma moda de boi, começou a pensar em um nome com a inicial consoante. Antes de chegar a Soberano, cogitou batizá-lo de Cigano, Minuano e Tucano. A história do boi-herói que salva o menino quando a boiada estoura em Barretos é pura ficção, ele atesta.

“Não é real, nenhum compositor gosta de escrever coisas reais. É igual contar piada que todo mundo conhece. Quem vai comprar o disco por causa daquilo? Eu criei a história.”

Romildo Sant’Anna, que faz uma análise ao final do artigo, escreve:

“Boi Soberano” é uma típica canção de epílogo: o poeta guarda para o desfecho a revelação mais empolgante da história que conta. Para meu livro A Moda é Viola, [Izaltino] contou-me alguns de seus segredos: “A boa música tem que ter suspense. A gente começa uma moda e as pessoas aguardam um final. Então eu mudo o final. Se o boi Soberano tivesse matado o menino, não teria novidade nenhuma, era o esperado. Mas o boi salvou o menino, esse é o suspense, a novidade. É difícil achar um bom tema e o mais difícil ainda é saber contá-lo”

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Zé Carreiro e Carreirinho, as vozes que fizeram de “Boi Soberano” um clássico dramático imediato.

Não quero, aqui, fazer uma análise sobre o conteúdo da canção, bastante explícita e direta. Também não interessa, neste momento, o aspecto sobrenatural da milagrosa atitude de Soberano face ao destino tirano que aguardava o menino, durante o estouro da boiada. Não, a discussão de hoje é de outro tipo: linguística.

Meu amigo Demorô, ao frequentar o blog, notou minha atração pelo estudo das raízes indígenas e africanas do caipira paulista (e que é basicamente o mesmo caipira do Paraná não-gaudério, de boa parte de Minas Gerais e dos estados do Centro Oeste, principalmente Goiás), indicando-me um belo documentário sobre a ilustre figura de Antonio Candido, que nos deixou em 2017. O curta, dirigido por Isa Grinspum Ferraz e intitulado Os caipiras, traz a análise sociológica de Candido sobre essa figura que transita entre os ares do campo e da cidade, herdeiro direto das tradições portuguesas, mas também forjado na mistura de raças proporcionada pela colonização do Brasil. Você pode conferir o curta aqui:

Me chamou a atenção a fala do sociólogo e crítico literário sobre o dialeto caipira, por volta de 18’13”. Palavras dele:

Nós sabemos que o caipira fala, às vezes, de maneira mais “pura” do que nós. Quando ele fala “pregunta”, “despois”, ele fala como falavam as pessoas cultas no século XVII!

Ora, “Boi Soberano” veicula justamente esse dialeto que, aos ouvidos mais puristas, soa como um “falar errado” o português – que, por sinal, é ele mesmo uma espécie de deformação de uma língua mais antiga no tronco latino. Observe as expressões que destaco, na letra da canção integralmente reproduzida abaixo:

Me alembro e tenho saudade / Do tempo que vai ficando, / Do tempo de boiadeiro, / Que eu vivia viajando. / Eu nunca tinha tristeza / Vivia sempre cantando, / Mês e mês cortando estrada / No meu cavalo ruano. / Sempre lidando com gado, / Desde a idade de 15 ano, / Não me esqueço de um transporte, / Seiscentos bois cuiabano, / No meio tinha um boi preto / Por nome de Soberano / Na hora da despedida / O fazendeiro foi falando: / “- Cuidado com esse boi / Que nas guampa é leviano! / Este boi é criminoso, / Já me fez diversos dano!” / Toquemo pelas estrada / Naquilo sempre pensano. / Na cidade de Barretos, / Na hora que eu fui chegando, / A boiada estourou, ai! / Só via gente gritando! / Foi mesmo uma tirania / Na frente ia o Soberano! / O comerço da cidade, / As porta foram fechando, / Na rua tinha um menino, / Decerto estava brincando. / Quando ele viu que morria / De susto, foi desmaiando / Coitadinho debruçô / Na frente do Soberano. / O Soberano parô, ai! / Em cima ficô bufando, / Rebatendo com o chifre / Os bois que vinha passando! / Naquilo o pai da criança / De longe vinha gritando: / “- Se esse boi matá meu filho, / Eu mato quem vai tocando!” / E quando viu seu filho vivo / E o boi por ele velando. / Caiu de joelho por terra / E para Deus foi implorando: / “Sarvai, meu anjo-da-guarda, / Deste momento tirano!” / Quando passô a boiada, / O boi foi se arretirando, / Veio o pai dessa criança, / Me comprô o Soberano. / “- Esse boi sarvô meu filho / Ninguém mata o Soberano!”

Observe que o caipira (o dialeto) traz diversas marcas, sendo as mais comuns o uso de adjetivos, substantivos e verbos invariantes quanto ao plural (bois cuiabano, as porta, os bois que vinha), além da apócope da consoante /N/ e os ditongos convertidos em vogais longas (parô, ficô, debruçô), bem como a rotacização do “L” (sarvai, sarvô). Fora isso, temos conjugações verbais muito próprias, como o “toquemo”, que rende até piada: “Qual o contrário de fumo? Ora, é vortemo!” – e sempre acho difícil falar “daqui a pouco eu volto”, pois me soa mais natural “daqui a pouco nóis vortemo”. Outra construção interessante é o “me comprô”, que não significa “comprou-me”, mas “comprou de mim“, e que usamos de forma muito natural no interior de São Paulo.

Mas gosto mesmo de notar que algumas dessas construções são até mais complexas no caipira do que no português “oficial”. Observe a expressão “idade de 15 ano”, bastante usada principalmente pelos mais velhos. Os mais jovens tendem a falar “os x anos”, e não “a idade de x anos”. No aspecto morfossintático, há verbos como o  “alembro” e “arretirando”, formas mais complexas do que “lembro” e “retirando”, e que aparece também em avoar, adesculpar, arresponder, arresolver (ou melhor, arresorver!), etc.

Pois alembro que, quando ouvi “Boi Soberano” na adolescência, foi com uma versão – bem intencionada, é verdade, mas de profundo mau-gosto, penso hoje – do disco Saudade de Tião Carreiro (1996), em que diversas duplas sertanejas contemporâneas (à época) homenageavam o criador do pagode violeiro. Nesse tributo, as gravações originais da dupla tinham algumas estrofes substituídas pelas vozes de gente como Leandro & Leonardo e João Paulo & Daniel, havendo também momentos a quatro cantos, quando os mais novos acompanhavam Tião Carreiro e Pardinho. “Boi Soberano” foi “complementada”, assim, com a participação de César & Paulinho… que decidiram simplesmente “corrigir” o canto original, no dialeto caipira. E, assim, “nas guampa” virou “nas guampas”; “diversos dano”, “diversos danos”; e o sacrilégio maior, “toquemo pelas estrada” virou “tocamos pelas estradas”! Confira, se tiver coragem:

E depois me aparecem – olha o caipira novamente – esses moços modernos dizendo que são sertanejos, quando não sabem nem falar nossa língua aqui do interior. Aliás, já vimos os prejuízos causados por esse tipo de atitude de indisfarçável vergonha pelo nosso falar (e por conseguinte, considerando a hipótese Sapir-Whorf, de nosso pensar), quando analisamos o caso de “Cuitelinho”.


A versão mais conhecida de “Boi Soberano”, entre as infinitas que temos, é essa de Tião Carreiro e Pardinho, em disco de 1966 que recebeu o próprio nome da canção:

A dupla era admiradora de Zé Carreiro e Carreirinho e gravou alguns de seus sucessos. No ano seguinte, em Encantos da natureza, registrariam uma continuação de “Boi Soberano”, intitulada “Retrato Do Boi Soberano” e composta por Dino Franco (Pirassununga) e João Caboclo. A canção é simplesmente linda. Quem começa narrando é o próprio menino salvo pelo Soberano, que cede voz também a seu pai – ou seja, temos uma narração dentro de outra. Emocione-se:

Mais tarde, a dupla Cacique & Pajé, no disco Os índios e a viola (1981), gravou “O Chifre Do Boi Soberano”. A canção, composta por Cacique, Geraldo Sampaio e José Rosa, consegue ser ainda mais emocionante que a “Boi Soberano” original, embora só faça sentido à luz desta. Narra um novo estouro de boiada, dessa vez em Andradina (terra de um chapa muito bacana que estudou comigo, o Benedito… por onde anda?), que é milagrosamente contido pelo som de um berrante. Não vou dar spoilers novamente, e você precisará escutar a canção para saber o porquê. É de mexer com o coração da gente. Ouça:

5 comentários

  1. Dia desses ouvi uma música sobre um boi que salva uma criança,mas não é essa,a história é outra.Minha mãe ouve esse tipo de música,não é minha praia.Quanto a Antonio Cândido,eu li um livro dele que fala justamente do caipira-paulista,não me lembro o nome.

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