187. Zero: “A Luta E O Prazer”

Não há mais lugar
Pra quem quer viver um grande amor
Ninguém quer saber de parar pra pensar um pouco mais
Com o coração
É um mundo estranho e mau
Bombas que derretem o sal
E fazem chorar
Dias sem razão


Confesso: em fins da adolescência, pensei em ser gótico. Via-me como um jovem adorador de dias nublados, cuja cor favorita era o cinza, e que se amarrava no som das bandas inglesas dos anos 1980. Vestia-me de preto em toda e qualquer ocasião e cheguei a ousar um estilo mais explicitamente dark: mas quando fui à universidade, pela primeira vez, vestindo camisa de abotoar e calças jeans pretas, mais uma bota com cara de coturno (essa, uso até hoje), além de um penteado “exótico”, todos riram de mim. E tinham mais é que rir mesmo, pois a beca era tão ridícula (e inapropriada para a realidade de um país tropical) que jamais cogitei repetir o (ul)traje. Foi a última vez, inclusive, que usei aquela camisa comprada em brechó. Que trauma.

Depois dessa fase – que alternava dias sombrios com alguns momentos mais diretamente punks, com meus amados jeans rasgados -, veio o longo período hippie (sandálias de couro e tudo) e o estilo fitness, que meio que vivo até hoje, com os trajes de corredor pra lá e pra cá.

Apesar de tudo, guardo saudade daquela fase sombria. As canções daquele tempo, também, continuam morando em meu coração, embora já não as leve tão a sério – até porque não levo a sério nem a mim.

E pensando em trazer algo daquele contexto, eis que lembrei da banda Zero. Entre os góticos dos anos 1980, talvez esses paulistas tenham sido aqueles que mais conseguiram alcançar alguma exposição no mainstream. Seu maior sucesso foi a canção “Agora Eu Sei”, cujos vocais eram divididos entre o líder Guilherme Isnard e Paulo Ricardo, à época, estouradíssimo com o RPM. De fato, foi uma pérola que tocou muito aqui em casa, também porque agradava ao meu pai.

Mas a canção do Zero que mais me marcou foi “A Luta E O Prazer”, nosso tema de hoje, que fecha o álbum Carne humana (1987). (E se eu disser que me lembro de ter ouvido esse som tocando em alguma rádio, quando tinha apenas dois anos? Sim, a canção é uma de minhas primeiras lembranças musicais, se não for a primeira).

Na época em que a escutava frequentemente, parecia-me o ponto mais alto da beleza gótica já alcançada pelas bandas do BRock. Hoje, sustento a mesma opinião: o instrumental é embasbacante, pesado, gélido, mas trazendo alguns sons agudos que parecem apontar para alguma saída, uma porta que se abre para desfazer a escuridão.

A letra – que, anos depois, descobri, não sem espanto, ter sido composta por Ronaldo Bastos, colaborador onipresente no Clube da Esquina – está em acordo com esse fundamento musical, já abrindo com uma pedrada pessimista: “Não há mais lugar / Pra quem quer viver um grande amor”. A partir daí, escancara-se a Caixa de Pandora do niilismo pós-moderno: fala-se em maldade, em pessoas que desistiram de pensar com o coração, em bombas, lágrimas e, numa única expressão, “Dias sem razão”.

E, quando estamos já quase sufocados por essa densa atmosfera de pessimismo, eis que, de fato, vê-se um filete de luz em meio ao umbral das negatividades. Sim, também coerentemente com o instrumental convidativo aos valores menos disfóricos, a letra cogita o retorno do amor esvaído: “Mas se o amor quiser chegar / Sem pedir licença / Nos brindar com sua presença / Você vai lembrar de alguém / Que cantava há muito tempo essa canção”.

Nota-se que esse convite tem lá sua sutileza: não sejamos ingênuos, os raios de sol não soterrarão as trevas assim, repentinamente. E a empolgação para com tal possibilidade é disfarçada por essa solução metalinguística, que faz retornar a atenção do ouvinte à própria canção, que tornará a percorrer o caminho da disforia, falando agora sobre a luta e o prazer (princípio do prazer versus princípio da realidade?), poder e caos.

Nesse mundo de desagregação, a ética é mesmo… o vazio. Zero.

Ou, como repete a voz da canção em seus momentos finais, “A vida não tem segredo…”

zero.jpg
Zero: elegância e sutileza gótica no BRock.

“A Luta E O Prazer” (cuja música foi composta pelos então integrantes do Zero, Freddy Haiat, Rick Villas-Boas, Eduardo Amarante, Malcolm Oakley e o próprio Guilherme Isnard) foi relida oficialmente em 2000, no álbum Eletro acústico. Ali, a faceta solar da obra aparece com mais nitidez, por vezes, sobressaindo sobre o clima dark – embora alguns elementos do arranjo original se mantenham preservados. Confira:

4 comentários

  1. Música única, diferente.. Banda Fabulosa.. Isso era viver no Mundo dos sonhos.. Apenas a voz surreal de Guilherme Isnard já era uma viagem para os sonhos, fazendo contraste com as letras tão Mensageiras.. Amo isso..

    Curtir

Deixe um comentário