272. Tribalistas: “Diáspora”

Atravessamos o mar Egeu
Um barco cheio de Fariseus
Com os Cubanos
Sírios, ciganos
Como Romanos sem Coliseu
Atravessamos pro outro lado
No rio vermelho do mar sagrado
Os center shoppings superlotados
De retirantes refugiados


Os Tribalistas agitaram de verdade aqueles fins de 2002. Para onde se ia, lá estava tocando “Já Sei Namorar” – que, a mim, sempre soou como uma canção perfeita: levada drum n’ bass gostosa, sonoridade acústica, a alquimia de vozes em uníssono e aquela letra bárbara, cujos versos “Eu sou de ninguém / Eu sou de todo mundo / E todo mundo é meu também” deveriam ser mais estudados por esse Brasil que não gosta de amar.

Todo mundo que foi adolescente naquela época deve saber ao menos assobiar alguma canção de Tribalistas (2002), o excelente álbum que unia esses artistas tão diferentes e tão complementares, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte. Além de “Já Sei Namorar”, “Velha Infância” tocou bastante, embora minha faixa favorita do álbum seja “Passe Em Casa”, cuja melodia me fisgou. Pensei, inclusive, em trazê-la ao blog, pois a ausência dos Tribalistas, aqui, já estava incomodando alguns interlocutores com quem trombei nos últimos tempos.

Porém, Jaque, que acompanha o blog e desde o início e fez apenas dois pedidos – ao contrário de certas pessoas que apresentaram uma interminável lista de desejos, né Dona Julia? Calma que já vou atender você também, zifia –, propôs que eu abordasse aqui “Diáspora”, um dos primeiros singles do aguardadíssimo segundo álbum do conjunto, que veio a lume nada menos que 15 anos após aquele rodado (mas nunca cansativo) disco de estreia.

Pois bem, gostaria de escrever um texto próprio, autoral… mas relembrei a resenha que o jornalista Mauro Ferreira fez sobre o single, à época – e sugestão do Rafa: faça como eu desde 2007, acesse diariamente seu blog –, e acho que ela já diz quase tudo:

É a mais inspirada e a mais surpreendente das quatro músicas apresentadas pelos Tribalistas [antes do lançamento do álbum completo de 2017]. Inclui citações do início do Canto 11 de O Guesa (de Joaquim de Sousândrade) e trecho de Vozes d’África (de Castro Alves). É uma música sobre a saga triste dos refugiados políticos. “Onde está o meu irmão sem irmã? / O meu filho sem pai?”, perguntam os cantores na letra. A récita dos textos pela voz cavernosa de Arnaldo encorpa o questionamento humanista sobre uma questão política. Os vocais agudos de Marisa no verso “Where are you?” sugerem dor, adornando bela gravação em que Brown toca instrumentos como cajóns, afoxés, baixo, Hammond, karkabou, bacurinha, bateria e beatbox. Cezar Mendes toca violão. Dadi pilota guitarras e teclados. Mas tudo no toque suave de tonalidade acústica que caracteriza o som dos Tribalistas.

Para além do comentário de Mauro, a canção me fez pensar em diversas questões que envolvem o tema da imigração e do exílio político, mas vão além. Com efeito, o deslocamento de pessoas por diversos territórios, separando-as de suas raízes – a tal diáspora do título – não se restringe ao material humano. O mundo está cada vez menor, e não apenas porque as distâncias foram encurtadas, ou porque os conflitos têm gerado uma massa de refugiados. O mundo está pequeno, e as pessoas estão desterritorializadas (sejam elas os muçulmanos que cruzam o Meditarrâneo, os latinos que atravessam a fronteira do México ou os indígenas que não querem ser expulsos pelo agronegócio), porque as relações foram desterritorializadas.

E quando digo “relações”, não estou apenas me referindo à comunicação. Falo de ways of life, que são acriticamente importados pelos países subdesenvolvidos, mas também de uma relação mais essencial para nossa sociedade capitalista: a relação social que se cristaliza na forma de dinheiro, como bem descreveu Marx.

Assistia, ontem, ao programa EntreVistas, apresentado por Juca Kfouri na TVT. O tema foi a dívida pública, e a discussão foi profundamente esclarecedora. Nunca havia pensado que, na atualidade, é cada vez mais impreciso se referir à dívida enquanto interna ou externa. Isso porque num país como o Brasil, por exemplo, os grandes beneficiários do pagamento do serviço da dívida são instituições financeiras estrangeiras, grandes organismos multinacionais.

Por sua vez, as operações que garantem o comprometimento do governo federal em pagar os juros da dívida – cuja amortização é sempre postergada, numa cadeia sem fim – envolvem movimentações financeiras com o meu e o seu dinheiro, que estão guardados em algum banco, estatal ou privado. Enquanto da posse desse recurso, a instituição é livre para operar com esses valores e, deles, extrair mais valores.

Então observe o resultado disso tudo. Com o fruto do trabalho sobre nossa realidade brasileira, as instituições financeiras obtêm valores que são remetidos aos grandes banqueiros, que não vivem aqui. Nosso dinheiro é, portanto, oficial e sub-repticiamente, desnacionalizado, à nossa revelia! Quer dizer, de nosso trabalho, parte da riqueza é apropriada e desterritorializada, deixando de fecundar as atividades econômicas necessárias para o nosso desenvolvimento. Por isso, permanecemos subdesenvolvidos.

Leandro Konder fala sobre isso em Marxismo e alienação (2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009):

Desde a revolução comercial, desde os primeiros tempos da substituição do feudalismo pelo capitalismo nos centros históricos, a história da humanidade registra um tremendo aprofundamento da diferença de nível alcançado pela evolução socioeconômica em determinados países em comparação com o atraso em que permaneceram outros países historicamente marginalizados. E, quando se montou o mecanismo espoliador do mercado capitalista mundial, os países historicamente marginalizados foram integrados a um sistema que os avassalava, que regulamentava e fixava as normas da sua exploração, em benefício dos países desenvolvidos (p. 227).

O escritor prossegue em sua argumentação, até alcançar a conclusão, ao mesmo tempo lógica e surpreendente, que justifica o teor do texto dessa sétima parte de seu livro, intitulada “Alienação e subdesenvolvimento”:

As analogias existentes entre a situação dos povos subdesenvolvidos em face do mercado capitalista internacional e a situação do operário em face do empresário capitalista ensejam o emprego do conceito de alienação (elaborado por Marx na análise da relação operário-capitalista) ao estudo da primeira relação mencionada (país subdesenvolvido-mercado internacional) (p. 230).

Não deixa de ser curioso, portanto, que tal relação de analogia também transpareça em “Diáspora” – que, em meio a tantos gentílicos e a versos que remetem às verdadeiras epopeias sofridas pelos refugiados, apresenta uma cena banal e cotidiana, que se reproduz diariamente em toda grande cidade: “Como Romanos sem Coliseu / Atravessamos pro outro lado / No rio vermelho do mar sagrado / Os center shoppings superlotados / De retirantes refugiados”.

Tendo lido Konder ou não, os Tribalistas acertaram em cheio: entre um processo de desterritorialização mais global ou outro mais local, o mundo vive mesmo é de alienações: processo de estranhamento, em que não me reconheço como pertencendo a determinado território, ou não me reconheço no próprio produto de meu trabalho.

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Tribalistas: reflexões para desalienar e, claro, fazer dançar também.

Em Tribalistas ao vivo (2018), “Diáspora” recebe uma bela releitura, com tocante acompanhamento do público:

4 comentários

  1. Poxa finalmente! Na verdade foram quatro músicas pedidas, sendo que uma (Gita) já estava na programação e outra que foi prometida estar no carnaval mas até agora nada! É meu amigo… o negócio não está muito bom pro seu lado hahaha

    Sou suspeita pra falar, mas acho essa música extremamente tocante, agradeço pelo pedido realizado!

    Um grande beijo

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    1. Caramba, achei que você tinha esquecido essa do Carnaval! Aliás, qual era mesmo? (hehehe)
      Quanto a “Diáspora”, foi uma ótima dica, pois eu não conseguiria alinhar tantas ideias (e foi ótimo colocá-las no papel) caso escolhesse outra canção do conjunto.
      Grato pela visita!

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