278. Elza Soares: “Comportamento Geral”

Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado


É interessante observar como o tempo pode, contraintuitivamente, rejuvenescer uma canção, tornando claro seu real sentido e mostrando, afinal, o quão visionário foi seu compositor.

Esse é o caso de “Comportamento Geral”, lançada por seu autor, Gonzaguinha, como um compacto simples em 1972.

Pois quando a escutei, pela primeira vez, julguei estar diante de uma canção aparentada de “Deus Lhe Pague”, de Chico Buarque. Abrindo o maravilhoso álbum Construção (1971), esse hino buarquiano era a tradução da ironia mais afiada possível, e achei que a obra de Luiz Gonzaga Jr. não seria muito diferente, principalmente por conta de versos como “Você deve aprender a baixar a cabeça / E dizer sempre: muito obrigado”.

Mas eis que aparece, em pleno 2019, essa figura imprescindível da canção popular brasileira, Elza Soares, mostrando que “Comportamento Geral”, antes de ser irônica, se refere mesmo àquilo que é entregue em seu próprio título: o comportamento de manada. Ê, vida de gado!

Ou seja, nada mais atual.

Sim, 2019 está todinho desnudado na esperta letra de Gonzaguinha. Repare: “Você deve estampar sempre um ar de alegria / E dizer: tudo tem melhorado / Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer que está desempregado”.

Não é a isso que estamos assistindo, nesse país destroçado e enlouquecido, com desemprego recorde e um “patrão” especialista em se vitimizar – sempre alvo favorito da mídia, das organizações de esquerda, do conluio globalista, do presidente da França, da chanceler da Alemanha, dos cientistas, professores, artistas, o próprio Papa e etc. etc. etc. –, enquanto discursa para seu séquito de fiéis que jamais dão o braço a torcer, diante da enorme besteira que fizeram ao empoderar um sujeito tão __________? (Complete com os adjetivos-substantivos abaixo, obra de Nemércio Nogueira, que roubei do blog do Juca Kfouri)

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Só mesmo alguém como Elza para, dando uma roupagem moderna a um clássico escrito há mais de meio século, fazer emergir um conteúdo lírico necessário e, quero acreditar, com um poder catártico.

(Sim, a canção deve ter uns 50 anos. Aqui, estou confiando na precisão histórica do filme Gonzaga: de pai pra filho, de 2012, na cena em que um adolescente Gonzaguinha acaba de compor “Comportamento Geral” e a entoa na solidão de seu quarto; mas a letra rascante da canção chega aos ouvidos do furioso Gonzagão, que repreende e censura o filho com um implacável “Agora deu pra fazer música de comunista?”)

Quem nos comanda (e não me refiro apenas à criança mimada e temperamental que ocupa o cargo mais alto da nação) não está para brincadeira, e não é (apenas) com ironias que conseguiremos resistir a tamanha enxurrada de retrocessos.

“Comportamento Geral”, e a própria Elza, representam essa possibilidade de nos animarmos – e estou falando mais de anima do que de ânimo! – para a luta, inspirando-nos na curiosa dialética entre passado e futuro, velho e novo, cristalizada tanto na canção como na intérprete.

Fazendo da velha-nova obra de Gonzaguinha o single de seu recentíssimo Planeta fome (2019) – e num delicioso arranjo reggae –, Elza acertou em cheio.

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Elza Soares: só quem é assim autêntica poderia explicitar a atualidade da obra de Gonzaguinha.

A versão original de Gonzaguinha é um clássico absoluto:

E, de uns anos para cá, muita gente boa gravou “Comportamento Geral”. Não vou conseguir comentar todas as versões, mas quero destacar algumas das que acho mais relevantes.

Assim, temos Maria Rita, em Coração a batucar (2014), num arranjo moderno:

O cantor Lineker (também conhecido como São Yantó), em eLe (2012), mescla o samba de “Comportamento Geral” com uma passagem rap:

De forma semelhante, no 27ª Prêmio da Música Brasileira (2017), o rapper Criolo, sempre muito à vontade no universo sambista, canta Gonzaguinha maravilhosamente, com direito a um discurso matador a certa altura. Versão épica e inesquecível:

Talvez pelo bom gosto do arranjo, a versão de Criolo me lembrou outra releitura clássica para a mesma canção, a de Emílio Santiago, no disco-tributo a Gonzaguinha Um sorriso nos lábios (2001). Essa voz linda faz uma falta… aprecie:

Se Elza afastou “Comportamento Geral” do samba e a roubou para as terras jamaicanas, a carioca Marya Bravo faz do clássico de Gonzaguinha um inquieto rock, em seu incrível Comportamento geral – canções da resistência, lançado nas plataformas virtuais em 2014, com versão física em 2016:

Outra jovem cantora que gravou “Comportamento Geral” – e estamos, agora, de volta ao samba – é a belíssima Mirianês Zabot, em Pegou um sonho e partiu (2016), outro tributo à obra do filho de Gonzagão. O arranjo é sóbrio e a intérprete tem um timbre lindo. Candidata a retornar ao blog… Ouça:

E, pra encerrar, compartilho a singela, mas afetivamente marcante, versão de Daniel Gonzaga, nada menos que filho de Gonzaguinha – e de quem já falamos aqui. Em Comportamento geral (2008), Daniel chega a assustar com um timbre idêntico ao de  seu pai. Escute a versão para a faixa que intitula o álbum:

6 comentários

    1. Acho que o sonho de todos esse cancionistas mais engajados era que suas obras soassem anacrônicas algum dia. Realmente, esse governo não tem deixado isso acontecer.
      Grato pelo comentário.

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      1. Acabei de comentar ” caminhos do coração ” e me vem este. Rsrsrs . Hoje, se fosse escolher uma do Gonzaga Jr para falar de dias atuais, sem dúvidas seria ” Fábrica de Sonhos “…..” coitado daquela gente que acreditou/marchando pela família e pedindo a Deus….”

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        1. Excelente observação! “A Fábrica De Sonhos” poderia ter perfeitamente entrado aqui no blog e tem tudo a ver com o momento atual. Acho que não percebi isso por não escutar a canção desde 2015, por aí.
          Uma outra que ficou atualíssima foi “Pois É, Seu Zé”: “Ultimamente ando matando até cachorro a grito / E a plateia aplaudindo e pedindo bis”. Ela tem uma citação incidental a “Um Sorriso Nos Lávbios”… e novamente Gonzaguinha parece mais profeta do que nunca: “O sangue, o roubo, a morte / Um negro em cada jornal / E um sorriso nos lábios”.

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