285. Made in Brazil: “Anjo Da Guarda”

Hei! Larga o meu pé
Você até parece chiclé
Me pegou e não largou mais!
Me esquece.


Não sou tão ligado no rock ‘n roll, o legítimo, que se praticou no Brasil dos anos 1970. Gosto, claro, mas não a ponto de colecionar álbuns ou perseguir artistas – coisa que, no caso do BRock da década seguinte, me tornei especialista.

Mas é curioso como, meio por acaso, o Made in Brazil apareceu em minha vida, marcando a década inicial do século XXI.

Primeiro, é preciso lembrar que, sendo São Carlos um templo do rock, “Minha Vida É Rock N’ Roll” foi uma canção que escutei infinitas vezes, talvez desde meu primeiro show roqueiro. Os chapas da Tarja Preta – para mim, a melhor banda sãocarlense de repertório próprio, que inclusive teve sua “Cidade Do Rock” tematizada neste blog – a tocavam em todas as apresentações, de modo que acabei aprendendo a letra meio que na marra. E sejamos francos: é mesmo um tesão cantar, a plenos pulmões, aquele refrão.

De frequentador de apresentações, passei a figurar em pequenos palcos da cidade, entre os anos de 2001 e 2003, empunhando violão, guitarra ou baixo (e, às vezes, os três instrumentos numa mesma apresentação). Foi um período de muito aprendizado, pois o conjunto contava com dois baita profissionais, Bruno Berlini nas baquetas e Juca Baldan no baixo (um violonista de mão cheia improvisado nas notas graves, e ainda assim, deixando muito baixista metido a besta comendo poeira).

Quando eles desistiram do projeto – com toda a razão pois, realmente, aquilo não levaria a lugar algum –, buscamos outros bateristas, assumi temporariamente o baixo e… de novo, o vazio. Zero. Nihil. Tanto que, pra encerrar as atividades da banda dignamente, tivemos que nos humilhar e reconvocar às pressas a “cozinha profissa”, com a promessa de que seria a última vez em que incomodaríamos Bruno e Juca. Depedimo-nos de nosso enorme séquito de fãs assim, com a formação original, na casa de uma garota chamada Evelyn, da turma escolar dos idealizadores do conjunto, Danilo Pinheiro e Al Lanzoni. Curiosamente, foi por ocasião do aniversário dela que tocamos publicamente pela primeira vez, numa memorável apresentação em 2001. (Evelyn – por sua vez, irmã de um colega meu de graduação, Maykel – se foi precocemente em 2014, e hoje nomeia uma rua de São Carlos).

Era gostoso tocar junto, apesar de tudo: apesar das brigas, apesar das quebradas onde acabávamos (ca)indo, apesar dos gastos (a banda deve ter gerado um prejuízo assustador, e é bom que nem tentemos contabilizá-lo), apesar do tempo perdido (afinal, éramos “tão joooooooovens…”). Tanto que, findo o conjunto, Danilo me convidou para um novo projeto, de teor intimista e acústico. Falando assim, parece ridículo, e talvez fosse mesmo. De toda forma, a ideia era boa: aprofundar o estudo das qualidades melódicas de nosso repertório, abrangendo também outros artistas, sem que nos afastássemos demasiadamente do rock.

Danilo, assim, conseguiu formar um trio: ele no baixo e nos vocais, mais dois violonistas nas cordas de aço, eu e um certo Hilário. São Carlos é uma cidade pequena: o tal músico era companheiro de uma ex-colega de trabalho de minha mãe, Vivi. Os dois moravam numa casa espaçosa, que virou nosso quartel general entre meados de 2003 e 2004.

Para formar um repertório inicial, cada um poderia propor uma canção a ser ensaiada. Danilo escolheu “Lágrimas E Chuva”, na versão do Kid Abelha em seu Acústico MTV (2002); eu sugeri “São Paulo” do 365 (banda que, praticamente, gerou dois posts aqui no blog: este e este); e Hilário apareceu com a proposta mais lado-B, uma certa “Anjo Da Guarda”, justamente, do Made in Brazil. A canção abria o álbum de estreia do conjunto paulista, Made in Brazil (1974), que trazia uma inusitadíssima versão hard rock para “Aquarela Do Brasil”.

Era uma peça de harmonia simples, pouca sofisticação instrumental e refrão contagiante e eficiente: “Meu anjo da guarda / Me guarda e me proteja / Dos demônios de saia / Dos demônios de saia”. Preciso reconhecer: à parte as limitações técnicas de nosso trio, mandávamos super bem em nossa releitura acústica, reproduzindo de forma idêntica aquela introdução sobre o acorde de Ré Maior.

Juro que não me recordo de termos tocado algo além dessas três canções, na meia-dúzia de ensaios que conseguimos agendar. Também não sei quando foi a última vez em que vi Hilário. Apesar de parecer um cara bacana, ele jamais foi integrado ao meu círculo de amizades – até porque havia um impeditivo geracional: Hilário era pelo menos 10 anos mais velho que eu e Danilo.

De qualquer forma, me diverti bastante com esses dois e pude aplacar com eles, momentaneamente, a vontade de tocar acompanhado. (Depois dessa experiência acústica, fui efetivado, em 2004, num conjunto de blues… que durou apenas um único ensaio).

Anos depois, tudo isso me veio à mente quando assisti (a poucos centímetros de distância) ao Made In Brazil tocar “Anjo Da Guarda” no Armazém Bar, em 2009. Não lembro exatamente a data, mas acho que foi proximamente ao Carnaval. O conjunto vinha de um momento delicado: a vocalista Deborah Carvalho, esposa do membro fundador Oswaldo Vecchione, se suicidara em janeiro daquele ano. Aliás, se não me engano, aquela foi a primeira apresentação da banda pós-luto.

Naquele momento, muita coisa girou pela minha cabeça: o fato daquele ser um momento histórico (pois histórica já era, em si, a trajetória do Made In Brazil, banda que consta no Guiness book como a que passou por mais formações diferentes, ao todo, cerca de 200); a estranheza em ver (e sentir) o Armazém absolutamente vazio, enquanto um dos maiores nomes do rock n’ roll brasileiro tentava se reerguer após uma tragédia interna; e o poder de “Anjo Da Guarda” ao vivo, me fazendo pensar em como foi sábia a sugestão de Hilário, para nosso efêmero projeto acústico.

“Anjo Da Guarda” e, de forma mais ampla, o próprio Made in Brazil, ficaram guardados, em minha memória afetiva, na gaveta dos anos 2000. De lá, nunca mais saíram, emergindo apenas no momento em que escrevo estas linhas – quando me vejo pensando nos ciclos que atravessam a vida, em sua interrupção inesperada (pois o post falou de duas personagens que não estão mais entre nós) e em como as lembranças podem ser, ao mesmo tempo, refúgio e fonte de ensinamentos.

Assim, sou grato ao Made in Brazil por, mesmo sem querer, ter me apresentado à bela dialética entre a efemeridade dos fatos e a eternidade das lembranças. E mesmo que isso tenha vindo à tona nada menos que 10 anos após a catarse de agitar o esqueleto ao som de “Anjo Da Guarda” ao vivo.

O rock n’ roll tem dessas históricas ironias…

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Os irmãos Oswaldo e Celso Vecchione, fundadores do Made In Brazil: sobreviventes ao/do rock n’ roll.

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