135. Moraes Moreira: “Meninas Do Brasil”

Três meninas do Brasil, três corações democratas
Tem moderna arquitetura ou simpatia mulata
Como um cinco fosse um trio, como um traço um fino fio
No espaço seresteiro da elétrica cultura
Deus me faça brasileiro, criador e criatura
Um documento da raça pela graça da mistura
Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil
Têm a cor da formosura


O baiano Moraes Moreira lançou, em 1980, um álbum fantástico: Bazar brasileiro, uma verdadeira celebração das tradições musicais tupiniquins, especialmente as manifestações populares da Bahia, do Ceará e de Pernambuco.

Ali está a canção de hoje, “Meninas Do Brasil”, uma parceria de Moraes com o cearense Fausto Nilo. O marcante refrão – “Deus me faça brasileiro, criador e criatura / Um documento da raça pela graça da mistura / Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil / Têm a cor da formosura” – se insurge como uma oração, um pedido de bênção e fertilidade ao ofício criador do cancionista, um alquimista das (g)raças que povoam nossa terra.

Nos demais versos, alguns achados poéticos de imenso valor, como a descoberta de que as três raças, combinadas no caldeirão da formação social brasileira, e metonimizadas na figura de três meninas, escondem a substância que é o segredo dos valores positivos preservados em nossa terra – daí a expressão “Como um cinco fosse um trio”, que reduz os cinco elementos (terra, água, fogo, ar e éter) aos fenótipos negro, indígena e branco.

Gosto, principalmente, das estrofes finais: “Se eu ganhasse o mundo inteiro, de Amélia a Doralice / De Emília a Carolina, e os mistérios de Clarice / Se teu nome principia, Marina no amor Maria / Só faria melodia com a beleza das meninas / Quando o povo brasileiro viu Irene dar risada / Clementina no terreiro restaurando a batucada / Muito além de um quarto escuro, nos olhos da namorada / Eu sonhava com o futuro das meninas do Brasil”. Aí, a letra faz um verdadeiro passeio pela história da canção brasileira, repassando personagens reais ou ficcionais que cantaram ou foram cantadas por diversos compositores: estão aí a “Amélia” de Ataulfo Alves, “Doralice” e “Marina” de Dorival Caymmi, a “Emília” de Wilson Batista, “Carolina” de Chico Buarque, “Maria, Maria” de Milton Nascimento (ou será a “Maria Vai Com As Outras” de Vinícius e Toquinho? Ou, quem sabe, alguma outra Maria, entre tantas?), a irmã de Caetano “Irene” (que tem citado seu refrão “Quero ver Irene dar sua risada / Irene ri, Irene ri, Irene”), além da própria Clementina de Jesus.

Dando sustentação à bela e serena melodia, uma harmonia que ensaia uma descida cromática a partir do acorde da tônica (E, Emaj7, E7), mas apenas percorre o campo harmônico de Mi Maior com alguns acordes alterados (como o A6, o A/E e B7), sem adicionar grandes dissonâncias no percurso que vai do Mi e retorna ao mesmo Mi – perfazendo um caminho pouco tortuoso, na verdade, bastante confortável e até calmante, o pano de fundo perfeito para uma canção-oração-celebração de puro /querer/ de conjunção e (contida) euforia.

Bazar brasileiro é um álbum, além de lindo, divertido. Ouça também outros clássicos, como a criativa “Forró Do ABC”, “Pessoal Do Aló” (com sua letra repleta de pequenos trava-línguas), a lindíssima “Lenda Do Pégaso” (parceria de Moraes com Jorge Mautner que poderia ser tematizada no blog) e, curiosamente, a contraparte masculina de “Meninas Do Brasil” (que encerra o lado-A), “Meninos Do Brasil” (encerrando o lado-B). Esta, composição de Moraes e Abel Silva, aposta que “Todos esses guris / Vão botar pra quebrar / Lá pelo ano 2000”, referindo-se a Amaros, Morenos, Davis, Pablos e Pedrinhos. E, como na canção sobre as meninas, reforçam-se todos os /quereres/ inundados em deleite e esperança: “Eu quero estar / Na pele, nos olhos / E nos sonhos / Dos meninos do Brasil”.

Um belo encerramento para um belo disco.

moraes-moreira
Moraes Moreira: celebrando o passado, o futuro e a musicalidade de meninas e meninos do Brasil.

Confesso que prefiro a versão de “Meninas Do Brasil” registrada no Acústico MTV (1995), que começa singela (voz-e-violão) e, aos poucos, recebe acréscimos dos demais instrumentos da banda que acompanha Moraes nesse show. Repare que a canção foi levemente abreviada, com a exclusão de uma estrofe (“Se a beleza não carece de ambição e escravatura / E a alegria permanece e a mocidade me procura / Liberdade é quando eu rio na vontade do assobio / Faço arte com pandeiro, matemática e loucura”):

Infelizmente, com o tempo a voz de Moraes foi ficando cada vez mais fanhosa e anasalada. É o que se percebe comparando a versão acima com outra mais recente, registrada no DVD A história dos Novos Baianos e outros versos (2008):

Em 2012, foi a vez de Fausto Nilo registrar sua canção, com um arranjo belíssimo, em Casa tudo azul. O sotaque cearense é irresistível! Delicie-se:

Por fim, não poderíamos deixar de registrar que a canção inspirou a formação de um excelente trio de cantoras, reunidas no projeto Três Meninas do Brasil: Jussara Silveira, Teresa Cristina e Rita Ribeiro (hoje, Rita Benneditto). Em 2008, elas gravaram o DVD Três meninas do Brasil – ao vivo pela Biscoito Fino, que é aberto com a canção de Moraes e Fausto, num lindo arranjo a três vozes:

(Sim, a canção é tão boa que ninguém conseguiu estragá-la!).

4 comentários

  1. Todas as gravações são boas,mas eu sempre prefiro a versão-original,ou melhor,quase sempre,algumas cantoras geralmente cantam melhor que os compositores.

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  2. Verdade,a Gal Costa e Marisa Monte melhoraram várias canções,mas a Elis passou a limpo quase tudo que cantou.

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