198. Celso Fonseca/Ronaldo Bastos: “Polaróides”

Vazia a casa por dentro, em volta nada
Vazio o baixo, a noite e o cobertor
Não fico triste inutilmente
Pensando que o encantamento entre nós acabou


Em 1997, Ronaldo Bastos – o autor da letra da primeira canção trazida por este blog, “Cais”, com música de Milton Nascimento – se uniu ao carioca Celso Fonseca num lançamento que já nasceu clássico: Paradiso.

Ao longo de 11 faixas, as composições da dupla passeiam por diversos gêneros, da bossa (principalmente) ao samba, passando por ritmos menos óbvios – como o ijexá de “Candeeiro” e o blues de “Out Of The Blues”. Bituca participa da faixa de encerramento, a linda “Quanto Tempo”, que poderia muito bem estar em qualquer disco do Clube da Esquina.

O album é baseado em arranjos acústicos, com forte presença do violão de Celso, mais o apoio das orquestrações de Jacques Morelenbaum, que também participa com seu indefectível violoncelo.

A canção de hoje, “Polaróides”, traz uma batida funkeada ao violão, apoiada pelo pulso percussivo de um pandeiro. Nenhuma das faixas de Paradiso, aliás, tem gravações de bateria; as percussões são eventuais e discretas.

O refrão é contagiante, mas custei a conseguir encontrar um sentido em seus versos: “Me desculpe a pressa, mas madrugada me chamou / Do meu canto eu prego a palavra que não se falou / Me desculpe a pressa, mas a madrugada me chamou / Só não vou na festa porque me interessa o seu amor”. Ora, se a madrugada me chamou, o que fui fazer (e onde), já que não fui à festa?

Depois de alguma meditação a respeito, consegui esboçar uma possível narrativa para a letra de Ronaldo. Veja se ela faz sentido.

Primeiramente, temos o sujeito enunciador entrando na casa de seu companheiro ou companheira – o que é plausível, pois é comum que namorados compartilhem chaves de suas moradas – sem encontrar a pessoa ali: “Vazia a casa por dentro, em volta nada / Vazio o baixo, a noite e o cobertor”. E, antes de pensar besteira, ele se vacina: “Não fico triste inutilmente / Pensando que o encantamento entre nós acabou”. Porém, só o fato de repelir a possibilidade da disjunção iminente já denuncia que algo não está bem entre o casal.

Na estrofe seguinte, o sujeito, explorando a casa, percebe algo que lhe chama a atenção: não há retratos seus por ali, nada que remeta à sua existência – o que é muito suspeito. A paranóia começa. Ele vai ao computador e observa o mesmo: no fundo de tela, uma paisagem do Leblon, em vez de uma foto do casal. Ou, nas palavras da canção: “Procuro por mim em volta e não acho nada / Gravado na tela do seu novo computador / Se paro meu olho na dela meu olho reclama / Da trama que envolve a paisagem noir do Leblon”.

Depois do refrão, o sujeito reflete sobre essa relação que – já não adianta mais negar – está desmoronando: “A gente tem quase tudo pra não dar certo / Mas quando estou perto um deserto se mostra maior / Se vejo asteróides eu penso que pode ser vento / Desejo que o vento me leve pra um mundo melhor”. E ele percebe, também, que vinha buscando prolongar indefinidamente esse estado agonizante, eternizando artificialmente os momentos do casal, por meio de uma polaróide: “Eu quero que tudo pra nós seja verão eterno / E dure no inverno o que dura o perfume da flor / Disparo outra vez polaróides e o tempo dispara / E a noite revela que o tempo da noite acabou”. Compare esse último verso com o último da primeira estrofe (“Pensando que o encantamento entre nós acabou”): se antes o fim era uma hipótese a ser teimosamente repelida, agora, é uma constatação tão inescapável quanto o transcorrer do tempo.

E agora sim o refrão faz sentido: em vez de ficar mais pouco ali, esperando a pessoa (praticamente já des)amada retornar, o enunciador se retira melancolicamente, deixando o recado “Me desculpe a pressa, mas a madrugada me chamou”. Retorna solitário ao seu canto (onde se aconchega junto de seus pensamentos) e remói a palavra “fim”, que tanto evitou: “Do meu canto eu prego a palavra que não se falou”. Mas sequer consegue reunir forças para a peraltice de cair na farra pois, no fundo, ainda tem esperanças de que a relação se conserte: “Só não vou na festa porque me interessa o seu amor”.

Será que é isso mesmo?

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Celso Fonseca: com Ronaldo Bastos, o autor de uma obra-prima chamada Paradiso.

“Polaróides” foi gravada e regravada diversas vezes.

Dessa vez, vou começar com as versões de outrem.

A primeira delas é a de Eliana Printes em Pra você me ouvir (2003), ressaltando o suingue funkeado da canção:

Já Belô Velloso, a cantora baiana sobrinha de Caê, em Um segundo (2007) transforma “Polaróide” num maracatu:

E agora vamos às versões com a assinatura do próprio compositor.

A primeira delas aparece no DVD Ao vivo (2008). Ali, “Polaróides” ressurge com andamento um pouco mais célere e violões idênticos aos da versão original, sendo conduzida, agora, por uma banda completa (baixo, bateria, teclados e um naipe de metais):

Já a versão mais recente foi registrada no programa Zoombido, apresentado por Paulinho Moska no Canal Brasil. Moska organizou as performances em seus programas – geralmente duetos com os convidados – em alguns singles veiculados nas plataformas digitais. “Polaróides” fecha Moska apresenta Zoombido: Celso Fonseca (2018), numa versão próxima da original:

E entre essas duas versões ao vivo, o registro definitivo. Acontece que, em 2011, Celso reeditou Paradiso como um novo álbum, Liebe paradiso, trazendo as mesmas canções. Os arranjos foram aprimorados e diversos convidados engrossaram o time de músicos que conduziram as faixas. “Polaróides”, assim, ficou nas mãos de diversas feras: o saudoso Arthur Maia no baixo, Donatinho (filho de João Donato) nos teclados, Armando Marçal na percussão e a incrível Sandra de Sá nos vocais. O clipe traz uma belíssima edição de vídeo:

2 comentários

  1. Celso Fonseca,ouvi muito,a voz lembra a do Caetano Veloso – Quanto à letra,eu sou meio ruim para interpretá-las,eu me pego mais na voz-interpretação-arranjo.
    Adoro análise de letra,as vezes cada pessoa explica de um jeito,rs.

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    1. Pois é, teríamos que perguntar a cada cancionista, para saber o que o texto cancional visou dizer.
      Quanto à comparação com Caetano, muito boa a observação. Os timbres se parecem sim, embora eu pense que Caê cante infinitamente melhor.

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