9. Adriana Calcanhotto: “Esquadros”

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus


O disco Senhas (1992), de Adriana Calcanhotto, foi o primeiro grande sucesso comercial da cantora e compositora gaúcha. O álbum, com algumas exceções – “Água Perrier” e as regravações de “Mulato Calado”, “O Nome Da Cidade” –alinha uma porção de faixas intituladas como substantivos no plural, enumerando elementos da paisagem urbana: a canção-título mais “Mentiras”, “Tons”, “Negros”, “Segundos”, “Graffitis”, “Velhos E Jovens”, “Motivos” e “Milagres” (esta, também uma inesperada regravação do Barão Vermelho dos tempos de Cazuza).

Uma dessas faixas é “Esquadros” que, ao lado de “Mentiras”, é o grande hit do álbum. Também é uma canção sobre a qual pairam curiosidades já analisadas aqui e ali, especialmente, a suposta referência a Claudio, cego irmão da cantora, a qual se coloca, na canção, frente a ele como um filtro da realidade, chegando antes “pra sinalizar o estar de cada coisa”. Mas Adriana já confirmou, incontáveis vezes, que não há irmão cego coisíssima nenhuma. De toda forma, bem que a letra parece refletir exatamente essa narrativa, e vamos tomá-la como verdadeira, aqui, apenas como exercício interpretativo.

A harmonia é interessante: se reveza entre as tonalidades de Lá Maior e Menor – esta, deixada para o refrão, sempre antecedido por um compasso que desagua no silêncio. Os acordes são relativamente simples, mas há a presença marcante de sétimas, sétimas aumentadas, nonas, além de uma curiosa transição de A9 para F#m7, passando por A7M(5+), no verso “Meu amor, cadê você?”.


adriana
Adriana, seu violão e sua bela voz, um conjunto que a MPB não consegue domar ou esquadrinhar.

Como no post anterior sobre Belchior, vou me ater mais à letra da canção. Inclusive, esta análise procurará expor alguns elos entre o cantor cearense e as características das faixas de Senhas – como a mencionada obsessão por enumerações.

Primeiramente, vejamos um comentário acadêmico sobre a canção, oriundo da dissertação de mestrado de Santana (A voz do feminino na poesia contemporânea de Adélia Prado, Adriana Calcanhotto e Angélica Torres. 2011. 105 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2011), que considera que “Esquadros” tematiza a individualização e a desterritorialização do sujeito:

Nessa letra de canção que não possui nenhuma marca de gênero, nota-se que a questão existencial é predominante nesse texto e em muitos outros que apresentam o eu lírico como portador do discurso da contemporaneidade. O eu lírico, na letra de Calcanhotto, assemelha-se a um flâneur, um observador, porque começa definindo seu olhar sobre o mundo, mas não interfere em nada. […] Dubiamente o flâneur está no centro, mas procura permanecer oculto socialmente, sem nenhum compromisso ou apego devido à transitoriedade imposta pela modernidade. O exemplo clássico de flâneur encontra-se na obra do poeta Baudelaire em Pintor da vida moderna, que nos percursos, nas observações e na absorção do mundo, está à procura do que ele chama de modernidade (p. 25).

E ainda, sobre o próprio título da canção, pontua a autora citada:

Etimologicamente, a expressão significa instrumento para medir ou traçar ângulos com precisão. Dentro desse contexto, cabe ao eu lírico a função de esquadrinhar, ou seja, perscrutar com atenção e minúcia o mundo e como um investigador metonímico da realidade seu olhar vai além das coisas, pois o seu foco de interesse são as cores […]. Percebe-se que o eu lírico busca por algo que dará sentido ao seu mundo, no qual predomina a impotência, o individualismo, como se a arte de Almodóvar e Frida Kahlo pudesse de alguma maneira sensibilizar o sujeito protegido por uma “segunda pele”, um “calo”, uma “casca”, enfim, levar o eu lírico encapsulado a ter uma percepção melhor do mundo, em vez de manter o distanciamento e a postura blasé perante as pessoas e as coisas em geral (p. 26).

Foram lançadas algumas pistas para se compreender a canção. Primeiro, a paisagem fragmentada da pós-modernidade; segundo, um sujeito que a tudo observa. E um esclarecimento: aqui, longe de mim tentar elaborar um perfil psicológico da Adriana; como já disse, busco apenas algumas chaves interpretativas não apenas para “Esquadros”, mas para o Senhas como um todo, sob a hipótese de que se trata de um disco conceitual.

Acredito que o sujeito da canção, cuja percepção aguçada da realidade se deve à habilidade/necessidade de descrever a paisagem para seu irmão cego, acaba se deixando conduzir por essa “vocação analítica”, se assim podemos dizer. Assim, a experiência urbana acaba sendo quase insuportável, e o categorizar se converte em obsessão. Temos aqui um sujeito que sofre – que vive “Chorando ao telefone”, isolado (“Meu amor, cadê você? / Eu acordei / Não tem ninguém ao lado”) e, ao mesmo tempo, vulnerável, exposto (“Exponho o meu modo, me mostro”). Impossível não sentir dores diante disso: primeiro, por conta do pesadelo que é, o tempo todo, ir atrás de descrições, analogias, porquês; segundo, porque a realidade não se deixa capturar tão fácil pelo pensamento (“Remoto controle”). As próprias experiências sexuais desse sujeito dão prova da impotência dos esquemas e esquadros diante das inúmeras possibilidades de vivências – e a bissexualidade da cantora, sempre discreta quanto ao assunto, mas que logo seria revelada para o grande público, ilumina os versos “Transito entre dois lados de um lado / Eu gosto de opostos”.

Em alguns momentos de Senhas essa obsessão resulta em comportamentos doentios, para não dizer tóxicos. Se em “Segundos” temos a impaciência e a insegurança (“Meu coração e meus passos / Andam em círculos atrás do seu rastro / Meus pés e meu peito / E no meu pulso direito / Bate o seu atraso / Será que você, meu bem / Será que você não vem?”), em “Mentiras” o quadro se agrava, convertendo-se em obstinação e importunação (“Eu quero quebrar essas xícaras /  Eu vou enganar o diabo / Eu quero acordar sua família / Eu vou escrever no seu muro / E violentar o seu gosto / Eu quero roubar no seu jogo / Eu já arranhei os seus discos / Que é pra ver se você volta / Que é pra ver se você vem / Que é pra ver se você olha pra mim”).

Por outro lado, essa percepção aguçada da realidade permite que o sujeito de “Esquadros”, ou melhor, de Senhas, se atente para o invisível – por exemplo, para a voz dos oprimidos na forma de arte urbana e seus “Graffitis”, ou para o racismo velado em “Negros”, só para citar outras duas faixas do mesmo álbum. Esse sujeito que “doer a fome nos meninos que têm fome”, no fim das contas, cria uma empatia para com os marginais e miseráveis, coloca-se ao seu lado e chega a lançar uma espécie de manifesto dessa tomada de posição, a própria faixa “Senhas”: “Eu não gosto do bom gosto / Eu não gosto do bom senso / Eu não gosto dos bons modos / Não gosto / […] /  Eu hospedo infratores e banidos / […] Eu não gosto de maus tratos / […] /  Eu gosto dos que têm fome / Dos que morrem de vontade / Dos que secam de desejo / Dos que ardem…”.

Aí estão postos os elos entre “Esquadros” (e outras canções do mesmo universo, em Senhas) e o Belchior de “Alucinação”. Afinal, como disse no post anterior, não era essa canção também um manifesto pela visibilidade dos excluídos, pelo imergir na realidade prosaica de quem está nas ruas, as pessoas de carne e osso, que têm história, têm fome, têm cores… e desejos?

E não teria sido essa a razão pela qual o próprio Belchior se identificou com a canção da Adriana, vindo a regravar “Esquadros” em 1996, no álbum Vício elegante?


Além de versões ao vivo voz-e-violão da própria Adriana (existem pelo menos duas na discografia oficial da cantora), desse curioso registro de Belchior, e de uma quase obscura regravação pela Gal no disco Aquele frevo axé (1995), há o belo dueto da cantora com Renato Russo, registrado no programa Por acaso da Band, em 1993. É interessante reproduzir a conversa entre Renato e o apresentador José Maurício Machline, sobre a canção:

– (Renato) A canção que eu escolhi se chama “Esquadros”. É do disco Senhas, né, novo. E… eu me identifico total, assim. Eu acho que…

– (José Maurício) Por quê? Por causa da música ou por causa da Frida Kahlo?

– (Renato) Eu acho a letra muito, muito… (Mais por causa do Almodovar!) Mas assim, eu acho que a letra é muito, muito bem escrita e a Adriana compõe de uma forma parecida com a gente na Legião. Que é assim, é sempre uma coisa meio mântrica, que se repete, e em cima disso a harmonia, e a letra e a melodia, vêm de uma maneira, depois repete… Não tem exatamente refrão e quando o refrão vem, vem de uma maneira diferente, com uma… assim, uma intuição diferente, com uma colocação diferente. Eu gosto muito disso! Acho bem legal.

Confira abaixo, conforme a prensagem dessa gravação em Duetos (2010), coletânea póstuma do líder da Legião Urbana:

9 comentários

  1. Faltou citar a versão dos Los Hermanos, se nao me engano- Luau MTV . Tem até um vídeo da Adriana cantando com o Amarante . Parabéns mais uma vez!!!

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    1. Em alguns posts, não me esforcei para levantar todas as versões oficiais acessíveis.
      Mas essa caberia no post, até para introduzir os Hermanos no blog. Acho que não a indiquei porque, sinceramente, não gosto muito dessa versão. A original me parece simplesmente imbatível!
      E seu comentário me fez escutá-la atentamente de novo, para entender o porquê dessa canção, na voz, da própria Adriana, me parecer tão mágica. A resposta me parece estar na melodia, que tem umas inflexões muito interessantes e incomuns (preste atenção em “Eu canto… para quem?”, por exemplo), e é sustentada por esse procedimento harmônico meio à Beatles (propor uma harmonia maior durante os versos, e sua contraparte menor durante o refrão). Fico com a impressão de que a versão original de Adriana chama mais a atenção para esses elementos.
      Grato pela contribuição.

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  2. Adriana é grande uma intérprete, além de excelente compositora( “Inverno” um poema do Antonio Cícero que ela musicou é maravilhoso! Uma música sem refrão….acredito que esteja no seu blog…. O menção aos Los Hermanos, era mais por curiosidades mesmo (tb gosto do trabalho deles). Voltando à versão da Adriana, sou até suspeito pois essa música tem uma participação importante na minha vida. Valeu!!!!

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    1. “Inverno” não está neste blog, mas apareceu recentemente no Sobre a Canção, do Túlio Villaça (deixei o endereço nos Links, caso não conheça). Eu também gosto muito dessa, e a análise do Túlio é perfeita. Ele escreve textos maravilhosos e foi uma das minhas inspirações para este projeto.
      Quanto aos Hermanos, acho que confessei em algum post que foi minha banda favorita dos anos 1990.
      A propósito: tem uma canção da Adriana, “A Mulher Barbada”, com participação da banda toda. Mais uma pra sua playlist!
      Grato pela conversa!

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