265. Som Imaginário: “Feira Moderna”

Tua cor é o que eles olham, velha chaga
Teu sorriso é o que eles temem, medo, medo
Feira moderna, o convite sensual
Oh! telefonista, a palavra já morreu
Meu coração é velho
Meu coração é morto
E eu nem li o jornal


Anteontem, tive um sonho impressionante.

Estou num show do Som Imaginário, com Zé Rodrix na formação. No palco, o reconheço imediatamente, com seu timbre vibrante, ao lado de Wagner Tiso. Eles tocam “Feira Moderna”, para a completa alegria da plateia, eu incluído. Reina no ambiente um sentimento de êxtase celebrativo, de pura comunhão entre almas desconhecidas que, ali, estão irmanadas pela letra da canção. Penso comigo: “Só posso estar no paraíso!”. Olho ao redor, e então vejo um senhor que se mantém imóvel, contemplativo, sereno. É Márcio Borges. Ensaio ir até aquela figura magnífica e imponente, para dizer-lhe o quanto suas canções são especiais para mim, e o quanto elas são necessárias (talvez mais do que nunca) para o Brasil. Após finalmente decorar o discurso e criar coragem, indo já ao encontro do irmão de Lô, acordo.

Deve ser um sonho antigo mas, bem dizia a turma do Clube da Esquina, os sonhos não envelhecem.


Também na semana que passou, meu chapa Marco Antonio havia me enviado um e-mail com dicas musicais, acompanhado de uma mensagem simples e direta: “Tô numa fase soul brasileiro, psicodelias e rocks rurais.” Entre as sugestões, uma canção já tematizada no blog (clique aqui) e “Mestre Jonas”, de Sá, Rodrix e Guarabyra. Assim, já estava prestes a tematizar, se não o Som Imaginário aqui no blog, ao menos algo que remetesse à figura de Zé Rodrix, e o sonho foi um empurrãozinho, de quebra, definindo qual seria a canção do dia.

“Feira Moderna” é uma parceria entre Lô Borges e Beto Guedes, com letra de Fernando Brant. O Som Imaginário – banda pela qual passaram, além de Zé Rodrix e Wagner Tiso, Luís Alves, Fredera, Robertinho Silva, Laudir de Oliveira e Tavito – a defendeu no V Festival Internacional da Canção. A performance do grupo, prensada, rendeu, na opinião de Márcio Borges em Os sonhos não envelhecem (8. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013),

a versão definitiva dessa música. A intenções de Zé Rodrix de tal maneira impregnaram a melodia que dela nunca mais puderam se separar, passando a fazer parte integrante da música, especialmente aquele riff que acabou virando marca essencial (p. 237).

Sobre a letra, existem diversas interpretações, já que o material textual é constituído por uma colagem de pequenos instantâneos do passado à contemporaneidade (de 1970!): a Feira Moderna (feira hippie de Belo Horizonte, iniciada em 1969, uma ilha de liberdade em meio à ditadura), a telefonista, a filosofia de Platão (mediante sua alegoria da caverna), o medo, o coração do enunciador, as notícias de jornal e referências a ícones da “família tradicional brasileira” (o Hino Nacional, o Hino da Independência e a oração ao Pai Nosso).

Existe uma narrativa, apócrifa – e duvido que o tímido Beto Guedes a teria revelado em alguma entrevista –, de que a letra se refere a um (des)encontro entre o cantor de Montes Claros e uma moça, talvez natural de BH. Há quem diga que a garota – negra, daí a referência à “cor” tomada como “velha chaga” – seja a própria telefonista, com quem Beto teria iniciado uma amizade “eletrônica” apenas pela coincidência de encontrar sempre a mesma atendente em suas chamadas. Mas já escutei que a telefonista seria um mero intermediário entre o músico e outra guria. Seja como for, o romance não se concretizou. A depender da fonte, a narrativa possui um final trágico: impedida, pelos pais, de namorar um porra-louca que frequentava feiras hippies (Beto), a moça teria se suicidado, o que foi noticiado num jornal… que Beto não leu.

Apesar dessas estórias fazerem sentido, prefiro as leituras acadêmicas sobre a canção.

Luiz Henrique Garcia, por exemplo, no Massa Crítica Música Popular, reproduz um fragmento de sua tese de doutorado, assim analisando a obra:

Esta música […] capta bem a associação entre os modernos meios de comunicação e o misto de espanto e sedução que atingem o homem moderno. A morte da “distância” e da “palavra” está associada a um meio que parece não dar conta de comunicar a novidade – o jornal. Anuncia-se uma nova fase em que o “agora” torna-se o tempo por excelência do mundo do capital, mas também, o que é muito interessante, o tempo por excelência da transformação. Porém, uma sutileza que chama bastante atenção é que esta urgência de “novidade” (muito bem simbolizada na figura da telefonista) vem entremeada por referências ao passado e a textos tradicionais, como o Hino Nacional, o Pai Nosso e o mito da caverna. Se a “feira” é “moderna” e o “convite” é “sensual”, este também é “sempre igual”, o que significa que o mercado pode ser percebido como algo que integra um conjunto de sistemas normativos que em algum momento da história estiveram restringindo a ação humana. Esta tensão entre a urgência do novo, própria do capitalismo, e a idéia de que o novo é uma reedição diferente da ancestral luta pela liberdade humana transparece em todo arranjo na versão do Som Imaginário, um desobediente rock selvagem com órgão elétrico e vocal gritado de Zé Rodrix.

No mesmo blog, Pablo Castro faz uma análise mais focada nos elementos propriamente musicais, sem descurar da poesia – o que o conduz a interessantíssimos insights:

No contexto do Clube, foi a primeiro flerte mais sério com o roque, com seu riff de baixo e intermezzo cromático tocados com aquela afirmação extravasada do gênero britânico. Defendida primeiramente pela banda Som Imaginário em um festival […], com a voz estridente e nervosa do saudoso Zé Rodrix e as metáforas típicas do Clube, aqui saltando à vista o temerário sorriso, a velha chaga, o medo, e a Feira Moderna aqui não pode ser outra coisa que não a TV. Independência ou morte é uma alusão clara da aliança da televisão (particularmente a Globo) com o regime militar, a paz na terra amém poderia ter sido grafada como a pax […] Dentro dessa intereseção roqueira do Clube com o rock […] Feira Moderna é mais exemplar desse movimento : uma estrofe (única ) de 7 (!?) compassos (em versos de 3+3 +1 ), e um longo refrão de duas metades de 11 (!!??) compassos remetem às idiossincrasias dos Beatles, repletos desses tamanhos irregulares de partes da forma, e os ganchos instrumentais são inspirados indubitavelmente nesse ethos da banda de rock. Daí ter sido a música de trabalho do Som Imaginário, em sua primeira e mais célebre formação, faz todo o sentido. Harmonicamente, a música gira em torno de Lá maior, repousando em seu relativo Fá sustenido menor durante o longo estribilho, e voltando ao tom por intermédio da subdominante, na famosa cadência plagal, típica do roque. É um marco na relação da música brasileira com a inundação invasiva anglo-saxônica, sem os hilários arremedos histriônicos dos Mutantes nem com a piegas reverência envergonhada da Jovem Guarda.

Depois de parágrafos como esses, fica até difícil se arriscar a escrever mais um tiquinho. Por isso, vou compartilhar apenas mais uma interpretação, dessa vez sobre os versos iniciais “Tua cor é o que eles olham, velha chaga / Teu sorriso é o que eles temem, medo, medo”. E faço isso por um único motivo: essa leitura me foi revelada justamente no sonho que tive, enquanto assistia ao Som Imaginário tocar a canção!

Bom, ali naquele espaço onírico, ficou muito claro, para minha (in)consciência, que a tal cor/velha chaga se tratava da mesma “cor do velho”, de nome impronunciável, exposta em “Assim Assado” dos Secos e Molhados – sendo que o “Guarda Belo não acredita na cor assim”. Assim, “Feira Moderna” não se inicia com uma consideração sobre o racismo, como se a cor negra, mácula desde os tempos da escravidão, não pudesse ser associada à alegria, já que a gente preta não teria motivos para sorrir. Nada disso: trata-se da cor vermelha, do ideário de esquerda, realmente uma “velha chaga” desde os primórdios do Brasil, país que nunca chegou, sequer, a concretizar os ideais da Revolução Francesa – que dirá os da Revolução de 1917! E, para o convervadorismo vigente (elipsado na letra de Brant), nada mais espantoso que o sorriso de um militante – afinal, em 1969/70, as organizações socialistas estavam sendo duramente caçadas (com cedilha mesmo).

Viagem? Ou faz sentido? Pouco importa. O que importa é que o Clube da Esquina, com suas canções inesquecíveis, continuem nos fazendo sonhar e imaginar.

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Som Imaginário: dando vida e veia rock a um clássico supremo do Clube da Esquina.

“Feira Moderna” foi gravada e regravada por muita gente. E, como quase todos esses registros têm lá sua relevância, vamos repassar, aqui, uma extensa lista.

A primeira versão que interessa é a de Beto Guedes, em Amor de índio (1978). Sobre ela, que atenua a pegada roqueira do Som Imaginário, vale um comentário acadêmico, registrado na tese de Diniz (“Nuvem cigana”: a trajetória do Clube de Esquina no campo da MPB. 2012. 231 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012):

Em sua [de Beto] abordagem, ademais de o rock agressivo perder um pouco de espaço para uma balada mais pop, as expressões “morto” e “velho” foram substituídas por apenas “novo”. Na entrevista que me concedeu, Fernando Brant afirmou que Beto recusava-se a identificar seu “coração” com essas características, razão pela qual trocou as palavras, atitude que, para o autor da letra, desconstruiu totalmente o sentido original (p. 77).

Realmente, é a cara de Beto fazer isso! E o que importa é que, daí em diante, os versos “Meu coração é velho / Meu coração é morto” seriam substituídos, sempre, pela repetição de “Meu coração é novo” – fazendo, realmente, os hermeneutas rebolarem para propor interpretações satisfatórias sobre a poesia de Brant.

Ouça:

Mais de duas décadas depois, Os Paralamas do Sucesso registrariam a canção em seu Acústico MTV (1999). Na exibição do programa, Herbert Vianna, antes de apresentar o número, relembrou da importância da canção enquanto símbolo da efervescência estudantil, nos tempos em que cursava a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Concordo com Márcio Borges: a versão do Som Imaginário é a definitiva. Mas, se alguém chegou perto de desafiar a pegada de Zé Rodrix e companhia, sem dúvidas foi o trio paralâmico que, mesmo acusticamente, acrescentou punch e volume – muito volume – ao arranjo gravado por Beto Guedes. Os metais são belíssimos! Confira:

A versão dos Paralamas comoveu Lô Borges que, em 2001, embarcou nessa onda revisionista e decidiu apresentar um álbum com arranjos modernizados para seu velho repertório. “Feira Moderna”, numa versão guitarreira, ainda que sem o peso do Som Imaginário, abre o disco, justamente intitulado Feira moderna:

Quando me dirigia (atrasado) para meu primeiro show do Lô, em 2012, “Feira Moderna” abria o espetáculo, e cheguei bem no finalzinho da performance, com mais pegada que o arranjo de Feira moderna. Essa versão aparece no ao vivo Intimidade (2008) e, de forma quase idêntica, no disco que Lô gravou com o fã e parceiro Samuel Rosa. Assim, em Samuel Rosa & Lô Borges ao vivo no Cine Theatro Brasil (2016), temos novamente “Feira Moderna” na abertura:

Um registro histórico é o do encontro entre Lô e Beto, no DVD deste último, 50 anos ao vivo (2002):

Quem também gravou “Feira Moderna” foi o Roupa Nova, grupo afetivamente próximo de Bituca e do pessoal do Clube, como vimos aqui. De fato, a versão aparece em seu álbum dedicado ao cancioneiro de mineiro, Ouro de Minas (2002), e conta com a participação de Zélia Duncan – o que promove, lá pelas tantas, uma modalização harmônica que, se não acrescenta muito à canção, também não a compromete, sendo impensável em suas outras aparições. Vale a escuta:

Já o cantor Fênix, com seu timbre feminino, apresenta “Feira Moderna” com um andamento mais acelerado, em Ciranda do mundo ao vivo (2011). Destaque para o maracatu que irrompe bem no meio da execução:

E, por fim, a gravação mais recente de todas: o cantor piauiense Flávio Stambowsky, convidando ninguém menos que Paulo Ricardo, moderniza a feira esquinense. O registro foi divulgado como single digital em 2018. Gostei! Veja se você também curte:

Como queríamos demonstrar, há canções tão incríveis que ninguém, absolutamente ninguém, consegue estragá-las.

7 comentários

  1. Estava ouvindo ”Som Imaginário”,coincidência – Eu sempre gostei de ”Feira Moderna”,há letras que são interessantes pelo jogo de palavras em si,dizer pra telefonista que a palavra já morreu é muito bom (seja lá o que isto queira dizer,rs).Parabéns pelo post.

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    1. Também sempre viajei nessa letra. Essa parte da telefonista causa essa estranheza mesmo. Que bom que gostou do post… tinha certeza que você teria algo a dizer sobre o Som Imaginário.

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      1. Adorei o texto. Muito informativo e análise magnífica. Curti muito a compilação das interpretações de Feira Moderna, música incrível, memorável e especial na minha memória. Excelente.

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        1. Oi, Letícia. Fico feliz que tenha gostado da postagem e da recolha de versões.
          De fato, “Feira Moderna” é uma canção incrível e é bacana saber que você também tem uma ligação especial com ela.
          Grato pela visita e pelo comentário, e fique à vontade para vasculhar o restante do blog.

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