16. Caetano Veloso: “Rocks”

Tatuou um Ganesh na coxa
Chegou com a boca roxa de botox
Exigindo rocks
Animais, metais
Totais, letais
Eu não dei letra
Tu é gênia, gata, etc.
Mas cê foi mermo rata demais
Meu grito inimigo é
Você foi
Mó rata comigo


Quando contei a ideia do blog aos colegas de república de meu amigo MP, fui perguntado se Caetano estava nos planos do 365 Canções Brasileiras.

Óbvio que sim; menos óbvia teria que ser a escolha: qual canção? Caetano escreveu muitas e toda a sua obra já foi bem dissecada. Por exemplo, pensei em trazer “Terra” ou “Fora Da Ordem”, ilustrando minhas considerações com a análise que Luiz Tatit faz dessas obras em Elos de melodia e letra: análise semiótica de seis canções. E pensei em outras mais: “Trem Das Cores”, “Sampa”, “Triste Bahia”, “Maria Bethânia”, “Tigresa”… e todas soaram óbvias demais, desnecessárias aqui.

Foi quando me flagrei escutando Cê (2006), disco que, à época de seu lançamento, fora saudado como uma arriscada incursão de Caê na seara do rock. Não o rock pasteurizado que contaminara canções como “Podres Poderes” e “Eclipse Oculto” e outras mais do compositor baiano. Um rock guitarreiro, ligeiro, direto…

A verdade é que  não é bem isso. É um disco de Caetano, tocado por um competente trio baixo-bateria-guitarra. Sim, os timbres lembram o indie rock que se popularizava (contraditoriamente!) em meados dos anos 2000; é nítida também a influência de Pixies e mesmo dos Titãs de Tudo ao mesmo tempo agora (1991) – aliás, “Odeio”, um dos destaques do álbum, chupou sua introdução diretamente da versão ao vivo de “O Pulso”, uma das canções de Õ blésq blom (1989) que antecipava a temática literalmente visceral desse renegado disco titânico. E apesar de ser iniciado com os versos “Você nem vai me reconhecer / Quando eu passar por você” (“Outro”), o disco é sim puro Caetano. (Enfim, não vim aqui fazer uma resenha da obra – existem ótimas por aí, como a de Marcelo Costa).

No entanto… sim, em  há pelo menos um momento de “rock guitarreiro, ligeiro, direto”, na faixa sintomaticamente intitulada “Rocks”. Tentemos falar algo dela.

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O rock é só a embalagem, o tempero, o formato… o Caetano de  é o mesmo de sempre, e isso é bom.

“Rocks” tem pouco mais de três minutos de duração. A bateria pulsa de forma reta, alternando momentos mais marciais com marcações no chimbal que antecipam o refrão: “Você foi mor rata comigo”. Nesse momento, a guitarra constrói um riff simples, apoiado nas cordas graves. Em geral, Pedro Sá, quem a pilota, toca apenas bicordes distorcidos e abafados, cedendo a palhetadas mais nervosas no refrão e no inacreditável solo, sobre o qual falarei mais abaixo. O baixo pouco aparece, ora acompanhando a bateria, ora a guitarra, e explora algumas notas mais agudas ao fundo do solo de guitarra.

Esse instrumental pesado, meio pós-punk, é sem dúvidas um destaque, e a letra da canção não fica atrás. Corre a informação de que a personagem “rata” seria Paula Lavigne, de quem Caetano se separava à época de , para reatar alguns anos mais tarde. Plausível. Aliás, penso que o álbum todo é sobre esse relacionamento, e que o título  não faz referência à primeira letra do nome Caetano, mas à própria ex-companheira, com quem o cantor dividia suas intimidades (e daí o no lugar do você ou até do tu, que soaria rebuscado e formal demais para se referir a alguém com quem se dividiu a cama).

Gosto da forma como Caetano se apropria de diversas gírias “jovens”: “Eu não dei letra”, “Tu é gênia, gata, etc.” (veja que é um “tu” coloquial, do qual se segue um “é”, e não um “és”) e “Mas foi mermo rata demais”. Aliás, é interessante que essas apropriações convivem com a própria dicção de Caetano, conhecida de outras canções, mostrando uma erudição que não se encontra em qualquer rock. Assim, temos os versos “Você foi concreta / E simplesmente / Rata comigo demais” (e não me lembro de conhecer outra canção roqueira com séries de advérbios!) e as incríveis aliterações dos versos iniciais: “Tatuou um Ganesh na coxa / Chegou com a boca roxa de botox / Exigindo rocks“. Aliás, fico me perguntando se não haveria uma figura de linguagem específica para nomear essa brincadeira que Caetano propõe com os diveros fonemas de (/x/, /z/ e /ks/).

Por que será que há esses dois dialetos, digamos, ressoando na mesma canção? Tenho uma hipótese. A personagem de “Rocks”, não obstante suas qualidades (“gênia, gata, etc.”), agiu de forma condenável, daí ser chamada de “rata”. Ela, que pedira a Caetano que compusesse/cantasse mais “rocks”, acabou ganhando um rock só para ela. Uma forma de vingança: “eram rocks o que você queria? Pois bem, fiz ‘Rocks’ pra você! Se você me trapaceou de forma vil, devolvo a gentileza, de forma igualmente abjeta”. Sim, a canção é uma pequena travessura, uma diabrura adolescente, e Caetano se veste desse “moleque travesso”. Portanto, a voz que canta não é a de um jovem, é a do próprio Caetano – afinal, que adolescente recita, coloquialmente, jogos fonéticos e sequências de advérbios? E a verdade é que Caê parece compreender perfeitamente que “Rocks” (e talvez todo o ) se trata de uma peraltice.


Fechando o post, vamos falar um pouco sobre o solo de guitarra de Pedro Sá. Nos comentários à canção no YouTube, apareceu uma discussão que, num primeiro momento, considerei meio bizantina, mas agora entendo sua pertinência. Segue abaixo um print com os principais depoimentos (exclui alguns que não considerei relevantes):

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Observe que o público se dividiu entre os mais puristas e aqueles que parecem entender mais sobre a estética do rock após a invasão indie dos anos 2000. Não tenho muito o que acrescentar à discussão, e estou do lado de quem aplaudiu o solo “propositadamente descaralhado” (adorei a expressão).

Mas gosto de chamar a atenção para esse tipo de debate; nem sempre encontramos, por aí, pessoas analisando o arranjo de uma canção. Foi meio com esse propósito que idealizei este blog, e sonho com o dia em que esse tipo de discussão aparecerá nos comentários – mesmo que não seja em 2019!

7 comentários

  1. Muito bom!!! Excelente texto.. Caetano com certeza rende muito material para esse blog! Acredito já ser muito analisada, mas gosto de “A Bossa Nova é Foda”.

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    1. Como tentei demonstrar com a postagem, não é lá uma canção para se levar muito a sério. O desleixo é proposital, afinal, Caetano e sua banda, àquela altura do campeonato, já não precisavam provar nada a ninguém.
      Grato pelo comentário, Francisco. Tem mais canções caetânicas pelo blog; se interessar, dê uma olhadinha!
      Um abraço.

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  2. Acordei com saudades de ler essas análises e vim correndo aqui, ver o que o dia 16 de janeiro de 2019 tinha a dizer para 16 de janeiro de 2023!
    Saudade do cê!

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    1. Às vezes até eu tenho saudade deste lugar! Mas que bom que você encontrou uma boa canção para 16/01. Foi uma das primeiras vezes em que me “sabotei” e troquei a canção planejada para dado artista. Meus planos para Caetano envolviam alguns sons bem mais antigos, mas andava escutando essa fase mais roqueira e achei que “Rocks”, literalmente, seria representativa daquele momento.
      Grato novamente pelo comentário e pela visita, Júlia!

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