269. Pouca Vogal: “Tententender”

Se eu disser que vi rastejar
A sombra do avião feito cobra no chão
Tent’entender a minha alegria
A sombra mostrou o que a luz escondia


Num breve recesso de suas respectivas bandas –  os Engenheiros do Hawaii e o Cidadão Quem –, os gaúchos Humberto Gessinger e Duca Leindecker criaram o originalíssimo power duo Pouca Vogal.

O nome da “menor banda do Brasil” faz referência à observação de Gessinger de que, aparentemente, conforme se percorre o Brasil do Norte ao Sul, as vogais vão ficando cada vez mais escassas nos sobrenomes. (Seria interessante averiguar cientificamente essa percepção! De minha parte, posso dizer que, nascido bem no meio de São Paulo, em meu nome e sobrenomes constam uma quantidade idêntica de vogais e consoantes).

O Pouca Vogal apareceu, em 2008, com oito canções inéditas, disponibilizadas gratuitamente na rede. Curiosamente eu, hiper fã dos Engenheiros do Hawaii – e sempre aberto a escutar novas composições de Gessinger – não me empolguei com a novidade, e só vim a conhecer a proposta do conjunto em 2010.

Mas foi paixão imediata. Os músicos souberam ser precisos, quanto a atingir o exato equilíbrio entre quantidade e qualidade. As apenas oito canções não eram apenas boas: eram excelentes, todas, sem exceção.

Uma das mais bonitas, representando uma faceta lunar e melancólica desse breve repertório, é “Tententender”, cujo título, em si mesmo, já chama a atenção. Com o andamento ditado pelo piano de Gessinger, somado à sempre competente guitarra de Leindecker, a canção traz um enunciador que, a partir da janela de um avião, observa a paisagem terrestre do alto e, traçando insuspeitas relações, alcança uma espécie de epifania. Revela-se, assim, o que era ao mesmo tempo óbvio e indesejável: que seu relacionamento “não saiu do chão”, “só fez rastejar o coração”.

A letra traz achados poéticos nem sempre comuns em canções populares, indo muito além do neologismo do título. Por exemplo, quanto ao aspecto fonossemântico, observe os seguintes versos, que se destacam pelas aliterações e pela rima encadeada (recurso muito presente nas obras gessingerianas): “Tent’entender: eu quero abrigo / E não consigo ser mais direto”. Note que a sonoridade empregada é inequivocamente truncada; não são versos que fluem sem obstáculos, que escoam suavemente. E faz todo o sentido, já que o contínuo fórico da canção é tortuoso, cheio de idas e vindas, em que o passado sempre ressurge a partir de um reexame atualíssimo, à luz – ou melhor, à sombra, como constam nos belos e paradoxais versos da primeira estrofe: “A sombra mostrou / O que a luz escondia” – de estímulos visuais e de ações algo hesitantes, por parte do sujeito. Daí a alusão à figura da cobra, com sua silhueta não linear e sua natureza rastejante e enroscadiça.

Gosto também do encadeamento de infinitivos na segunda estrofe (entremeados por um advérbio com sonoridade semelhante), fechados brilhantemente com um infinitivo substantivado: “Se eu quiser ser mais direto / Vou me perder / Melhor deixar quieto / Tent’entenderTent’enxergar / O meu olhar / Pela janela do avião”. A interrupção da sequência, com o último verso, traz novamente – dessa vez, no campo das relações sintagmáticas – o caráter sinuoso, quase labiríntico e vacilante, do jogo entre a aceitação de que a conjunção amorosa não é mais viável, e a necessidade de comunicar essa descoberta ao outro sujeito da relação.

Com letra de Gessinger e música da dupla, a obra é assim descrita na autobiografia do ex-líder dos Engenheiros do Hawaii (Pra ser sincero: 123 variações sobre um mesmo tema. Caxias do Sul: Belas Letras, 2009):

Numa das rotas de volta a Porto Alegre, os aviões sobrevoam Gramado. Dá pra ver lugares familiares se o céu estiver limpo, se a poltrona for numa janela do lado direito e eu não estiver dormindo. Nesses voos, domingo ou segunda de manhã, sempre estou caído de sono depois de algum show, algumas horas de asfalto e de aeroporto.

Num dia lindo, fiquei seguindo a sombra do avião lá embaixo, passando pelas estradas da serra que parecem serpentes envolvendo os morros. Escrevi a letra num guardanapo da TAM. A música pintou muito rápido. Duca ajudou a pensar uns acordes no refrão (p. 272).

Em tempo: não deixe de conferir os incontáveis posts em que trouxe Humberto Gessinger ao blog (navegue usando a nuvem de palavras “Quem canta/compõe”), bem como a postagem referente à linda “Girassóis”, do Cidadão Quem.

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Pouca Vogal: nesse exército – o exército de dois homens sós, mas não solitários –, Leindecker e Gessinger se viram pra tocar mil instrumentos.

Em Pouca Vogal ao vivo em Porto Alegre (2009), a dupla reapresenta “Tententender” acompanhada de um pequeno conjunto de câmara. Até o maestro embarca na onda de se dividir entre várias tarefas – marca registrada do Pouca, com Leindecker e Gessinger sempre paramentados de suportes e pedais para acionar percussões, baixos e teclados –, regendo a orquestra enquanto pilota um cravo. Vale a pena ouvir e acompanhar as imagens:

“Tententender” é uma canção inimaginável em algum repertório que não seja o do próprio Pouca (por sinal, em recesso, pois Leindecker e Gessinger vêm cuidando de suas carreiras solo). Ou, pelo menos, era isso o que eu achava, até escutar a obra nas vozes das lindas garotas da dupla tocantinense Anavitória. A composição do Pouca Vogal constou no EP Anavitória (2015) e ganhou um arranjo ao mesmo tempo animado e cheio de meiguice. Com o perdão do trocadilho, Palmas para as moças! Confira:

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