5. Chico Buarque & Maria Bethânia: “Flor Da Idade”

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor


Muita coisa já foi dita sobre Chico Buarque e, especialmente, sobre essa – aparentemente – singela canção, composta em 1973, vindo a lume dois anos depois, no antológico Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo. Assim, prefiro que outras pessoas mais competentes que eu falem sobre essa obra, e recorro a Lorenzo Mammì em seu livro A fugitiva: ensaios sobre música (São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 364 p.):

Às vezes, o núcleo temático [das canções buarqueanas] não é uma frase singular, mas a assunção de certo hábito linguístico, de uma maneira de falar. É natural que as canções que Chico Buarque escreveu para o cinema e o teatro apresentem com maior frequência essa característica. “Flor Da Idade” foi escrita para a peça Gota d’água (1975), onde é cantada por um grupo de homens que comentam de maneira bastante vulgar, num boteco, os atrativos de uma adolescente. Não se refere a uma personagem específica, mas concorre à caracterização do ambiente degradado de classe média baixa que é o cenário do drama. A própria harmonia elementar que sustenta a melodia (Dó, Fá, Sol, Dó) seria adequada a um “sucesso de rádio de pilha”, um daqueles que a moça gosta de dançar seminua na frente da janela. E, no entanto, a canção é muito mais do que uma paródia: a imitação minuciosa da fala dos homens e, por meio dela, a descrição da sedução ingênua e despudorada da adolescente não seriam possíveis sem uma solidariedade que descubra, atrás desses comportamentos agressivos, um erotismo, afinal, positivo. “Flor Da Idade” é uma garota de Ipanema de subúrbio, ela também passa e balança, e a canção também, no refrão, se abandona a uma nostalgia em tom menor. A harmonia banal não é apenas um recurso descartável, remete a uma alegria verdadeira, a emoção que transmite é real – tanto que a canção pôde ser reutilizada, num contexto bem mais otimista, no filme Vai trabalhar, vagabundo, de Hugo Carvana. É justamente essa ambiguidade que autoriza o compositor a inserir na coda uma longa citação da “Quadrilha”, de Drummond, poema dos amores juvenis e interioranos – modificado, porém, para que todas as relações se tornem mais transgressivas e promíscuas: “Lia que amava Lea que amava Paulo que amava Juca”; “Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha”; “Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha”. “Flor da idade” junta alta poesia e conversa cafajeste, Drummond e Nelson Rodrigues, brutalidade e inocência, e o faz numa composição tão simples que qualquer um poderia cantarolá-la de um jeito despretensioso, sem atinar com a complexidade de suas referências.

Disse tudo, Lorenzo! Acho que as palavras do autor deixam claro em que sentido me referi a “Flor Da Idade” como uma canção simples “aparentemente”. Afinal, a mera presença da coda drummondiana, ao final da canção, já é motivo para caracterizá-la como algo mais complexo do que uma coleção de chavões machistas, embora arrolados de forma bem poética, nas três estrofes principais da letra.

Além dessa referência literária, preste atenção às abundantes e onipresentes aliterações, bem ao gosto de Chico. Para uma análise acadêmica sobre os sons aliterantes nos versos da canção, recomendo a leitura do artigo de Pereira et al. (A expressividade linguística na letra da canção Flor da Idade, de Chico BuarqueVerbum, São Paulo, v. 6, n. 4, p. 55-69, 2017).

Ainda quanto à letra, nada como o refinado humor de um poeta, ao descrever uma simples “pala” do garoto vizinho, que um casal convida para almoçar em sua casa: “A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha”. Gênio!


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Chico já não está mais tão na flor da idade, mas ainda é um cancionista insuperável – diria, até, em nível mundial.

Vamos falar sobre essas relações entre a coda da canção e o poema “Quadrilha”, de Drummond. Novamente, é o artigo de Pereira et al. a referência principal desta análise. Primeiramente, é interessante comparar o poema com a estrofe de Chico, que o relê com novos personagens:

“Quadrilha” “Flor Da Idade”
João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. / João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história. Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo / Que amava Juca que amava Dora que amava / Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito / Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava / Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava / A filha que amava Carlos que amava Dora / Que amava toda a quadrilha

Ora, vejamos o que os autores, que estamos citando, afirmam sobre as relações intertextuais acima, e peço perdão por mais uma longa citação:

No caso da canção “Flor Da Idade”, a última estrofe evoca o poema de Drummond a partir de três aspectos. Primeiro, na estrutura sintática de ambos com a repetição de nomes próprios que funcionam como sintagmas nominais seguidos do sintagma verbal composto com o verbo “amar”, conjugado no pretérito imperfeito, indicando assim uma ação realizada no passado. Segundo, através da recorrência ao nome Carlos presente no início de todos os versos da última estrofe da canção. Em terceiro, temos a referência direta ao nome do poema de Drummond, “Quadrilha”.

O “acabamento”, a moldura, possível de ser identificada na canção de Buarque em relação ao poema de Drummond, para além da homenagem, apontam em outras duas direções:
1) Na quadrilha de Drummond, o ciclo dos amores ocorrem apenas entre pessoas de gêneros diferentes e não apresentam finais muito felizes, como é comum, por exemplo, em algumas romances, novelas […]. O único enlace que ocorre no poema é o da personagem Lili com alguém que não possui nome, apenas sobrenome, o que remete a um casamento com base mais na importância social do sobrenome, já que, segundo o texto, Lili “não amava ninguém”. Nesse sentido, casamento não é sinônimo de amor.
2) Em “Flor Da Idade” o ciclo do amor é ampliado à medida que ocorre também entre pessoas do mesmo gênero: “Dora que amava Rita… Paulo que amava Juca” e para as outras dimensões do amor: “Pedro que amava tanto que amava a filha”. Neste texto também, como é finalizado em “Dora que amava toda quadrilha”, não ocorrem os “finais”, ampliando, assim, as possibilidades para o ciclo dos amores.

É exatamente isso: na canção de Chico, o clima é dionisíaco o suficiente para que não esteja imposta nenhuma restrição ao ato de amar – que, como visto em “Quadrilha”, está mais associado à tragédia, às formalidades e aos ritos sociais (em resumo, à disforia) que ao deleite e a demais sentimentos eufóricos. Não, para Chico não há tais limites, como já apontou Mammì na citação do começo do post: além da homossexualidade de “Paulo que amava Juca” e de “Dora que amava Rita”, temos a reciprocidade (“Rita que amava Dito que amava Rita…), o amor paterno (incestuoso?) de “Pedro que amava tanto que amava a filha” e, no mesmo verso, a ideia de gradação, trazida pelo advérbio “tanto”. E vamos amar!

Num raro momento de desocupação, elaborei um mapa conceitual para ilustrar o que ocorre na coda de “Flor Da Pele”. Aliás, tenho a impressão de que criei este blog só pra compartilhar essa figura:

flor-da-idade-mapa.jpg

Aham, agora ficou muito mais claro! Brincadeiras à parte, o mapa teve o poder de me revelar, também, que o personagem principal dessa nova “quadrilha” não era Carlos (homenagem voluntária ou involuntária ao próprio Carlos Drummond?), como a presença no início dos versos sugere, mas sim Dora. Afinal, é dela que partem setas para vários outros personagens (ou para todos eles, como indica a proposição “Dora – que amava – toda a quadrilha”) e para onde essas setas, invariavelmente, retornam.

Depois dessa experiência de ler Chico com mapas conceituais, acabei criando alguns outros diagramas de suas canções, utilizando o mesmo CMapTools. O público do blog terá oportunidades, ao longo do ano, de conhecê-los.


Salvo engano, “Flor Da Idade” nunca recebeu uma gravação oficial de estúdio por parte do Chico, constando apenas no disco ao vivo com Bethânia. No entanto, Filipe Catto gravou uma versão excelente, para a trilha da novela global Jóia rara (2013). Na releitura do cantor gaúcho, a parte da coda fica ainda mais divertida e, para minha alegria, é cantada suas vezes:

7 comentários

  1. Redescobrindo o significado de algumas músicas,surpreso com a diversidade amorosa dessa Quadrilha.

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  2. Descobri esse blog hoje ao procurar um fluxograma de blocos para a música Espinho na Roseira. Estou amando! Parabéns!

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    1. Oi, Luisa. Entre tantos posts, realmente apresentei alguns diagramas em algumas delas. Os meus favoritos são o que apresento aqui no post do Karnak e aquele de “Flor Da Idade” mesmo. Que bom que você também está gostando do blog. Fique à vontade para ler, comentar e discutir outros posts!
      Um abraço e grato pela visita.

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