4. Walter Franco: “Lindo Blue”

É bom
Poder cantar
Em qualquer tom
É muito bom
Saber voar
Além do mar
Além do som
É muito, muito bom


Para minha vergonha, fui apresentado à música de Walter Franco muito recentemente. Quer dizer, ouvir algo desse peculiar compositor paulista, já tinha ouvido de outros carnavais. Mais precisamente, no disco Sinal fechado, do Chico, havia uma regravação de “Me Deixe Mudo”, lançada em 1973 por Franco – canção que, de certa forma, me cativara à primeira audição.

Quando meus amigos Luciana Massi e Michel Carnio (alô, vocês estão aí?) colocaram Respire fundo (1978) para tocar no carro durante uma agradável carona, simplesmente não liguei o nome à pessoa. Mas me senti verdadeiramente privilegiado por estar conhecendo aquele som, e embasbacado com aquela mistura de rock progressivo com a essência do mantra indiano (fora essa a definição que dei, àquele momento, aos sons que ouvia, e não sei se devo abdicar dela).

Isso tudo soa mais estranho considerando que, dentre os artistas da chamada Vanguarda Paulistana, eu estava pra lá de familiarizado com compositores/intérpretes até menos palatáveis e digeríveis que Walter Franco, por exemplo, as dodeca(co)fonias de Arrigo Barnabé e a palavra-cantada de Luiz Tatit e seu Grupo Rumo. Mas do autor de uma canção simples e direta como “Respire Fundo”, praticamente não ouvira falar.


Bem, vamos comentar “Lindo Blue”. Trata-se da quarta faixa de Respire fundo, seguindo o quase-hit “Coração Tranquilo”. Inicia-se com um delicado arpejo de piano, que logo divide espaço com um ponteado ao violão. Só esses segundos iniciais já nos guardam surpresas e estórias. Quem toca o piano é, simplesmente, o mutante Arnaldo Baptista. Já o violão (na verdade, a craviola) é de ninguém menos que Lulu Santos! Quando Franco começa a cantar a serena estrofe inicial da canção – leia-a na epígrafe do post – a banda toda já está tocando. E, pasme: na bateria, Lobão; no baixo, Paulo Cézar, do conjunto Renato e Seus Blue Caps; na flauta, o saudoso Altamiro Carrilho (informação que procede daqui); e, como se não fosse pouco, o alucinante solo de guitarra é do também mutante Sérgio Dias Baptista. Tirando a nota a respeito da flauta de Carrilho, todas as outras informações têm como fonte o livro autobiográfico 50 anos a mil, do próprio Lobão.

Essa formação bizarra – não quero dizer que é um dream team para não exagerar na babação de ovo – se explica por conta de uma obscura anedota do rock nacional. Por um breve período, os ex-mutantes irmãos Baptista, Ruy Motta e Antonio Pedro de Medeiros, somados ao Lulu, formaram um dos mais efêmeros e improváveis grupos musicais da “new wave”, o Unziôtru. Durou alguns ensaios… Há mais detalhes sobre essa curiosa página da história do BRock logo no comecinho no excelente livro Dias de luta: o Brasil e o rock dos anos 80, de Ricardo Alexandre. A presença simultânea de Lulu e Lobão nessa faixa, por outro lado, se explica pela proximidade de ambos à época, egressos do lendário Vímana – conjunto progressivão que os dois mantiveram, também por breve período, com a companhia de outro ícone dos anos 1980, o inglês Ritchie.

walter-franco
Walter Franco, cantando em qualquer tom e apenas… respirando fundo, de dentro pra fora e de fora pra dentro.

Voltando a “Lindo Blue”, como de regra nas canções de Walter Franco, a letra é simples. A canção é contemplativa e sublime do início ao fim. Exala uma aura de positividade inabalável: “Faz bem / Faz muito bem / Mergulhar / Em pleno ar / Em plena luz”. E arremata: “Faz bem / Faz muito, muito bem / Sentir o céu / Se transformar / Num lindo blue”. Os vocais são propositadamente berrados/desafinados, reforçando a observação dos primeiros versos, de ser bom “poder cantar em qualquer tom”.

Na minha percepção, Franco está, aqui, claramente respondendo a críticas sobre seu estilo enquanto intérprete vocal. Diogo Mendes, no blog Ponto Fervura, compartilha da mesma visão:

Declarada resposta a recepção anterior [“Coração Tranquilo”], surge o deboche de “Lindo Blue” em que o cantor atua a possibilidade do canto em qualquer tom. A união do piano e arranjo origina leveza adequada para uma letra que busca liberdade de criação do artista e espaço de sobrevivência.


Em 2018, Walter Franco receberia uma merecida homenagem com o tributo Um grito que se espalha, organizado por Leonardo Vinhas (saiba mais, ouça e baixe acessando o Scream & Yell). Felizmente, “Lindo Blue” foi uma das faixas escolhidas para celebrar esse grande cancionista. A versão ficou a cargo da banda paulista Seamus, que fez uma releitura reverente ao arranjo original (mantendo inclusive o tom em Ré Maior), mas com muito peso e personalidade. Confira:

11 comentários

  1. Uau!!! Excelente post! Obrigada por me apresentar o Walter Franco de verdade!!!!rs Adorei a legenda da foto… de dentro para fora e de fora para dentro… tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo! Vc sabe que tenho dúvidas sobre outras letras dele, incluindo a própria respire fundo e, principalmente, criaturas… Se achar que vale a pena quero ver sua análise! :))

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  2. Rafa, eu já tinha ouvido Walter na voz de outras pessoas mas nunca tinha ouvido nada na voz dele mesmo. Vou colocar na minha wishlist da minha coleção aqui.

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  3. Realmente uma música que não se cansa de ouvir. Ainda mais tendo conhecimento dos “bastidores” que a constituem. Sensacional, Rafa!

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  4. Adorei e também desconhecia,uma penas as rádios não apresentarem essas peças da nossa música.

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