243. Carlos Maltz: “Quase Uma Oração”

Pode estar aqui do lado
Num quarto de motel
Pode ser aquele mendigo
Dormindo embaixo do céu
Pode ser a chuva que cai
Sobre os automóveis
Da Praça da Bandeira
Podem ser as ondas do mar
Furiosamente
Lambendo toda a areia


Depois que saiu dos Engenheiros do Hawaii, em 1996, Carlos Maltz integrou a Irmandade Interplanetária. Nesse conjunto de nome esquisotérico, o baterista deu vazão a sua produção cancional que, diferentemente das letras existencialistas de Humberto Gessinger nos Engenheiros, investia em temas místicos e espiritualistas, considerando sua formação em astrologia.

A Irmandade fez algum sucesso no circuito underground e lançou um álbum até que interessante, Irmandade Interplanetária (1996), que trazia a simpática canção “Depois De Nós” e uma versão acústica para “O Castelo Dos Destinos Cruzados” (canção de Maltz, cantada por ele mesmo, presente no último disco dos Engenheiros em que tocou, Simples de coração, de 1995).

Já no início do século, após anos sem falar com Humberto Gessinger, Maltz se reaproximou de seu antigo parceiro – mantendo, de qualquer forma, suas divergências ideológicas e criativas, já que Maltz simpatiza com o conservadorismo e Humberto, embora fuja do assunto, tem mais afinidade com os ideais da esquerda.

Desse reencontro surgiram diversas parcerias nos Engenheiros do Hawaii, incluídas nos álbuns derradeiros da banda gaúcha – Maltz compôs com Gessinger “e-Stória”, “Segunda-Feira Blues” (I e II) e “Cinza”, e participou do último DVD do parceiro, Ao vivo pra caramba (2018), tocando timbales em “Filmes De Guerra, Canções De Amor”.

Outro produto da reaproximação de Maltz com Gessinger foi o álbum Farinha do mesmo saco (2002). O disco traz 11 faixas, incluindo regravações de “Depois De Nós” (que, mais tarde, apareceria com arranjo semelhante no Acústico MTV dos Engenheiros, de 2004) e “O Castelo Dos Destinos Cruzados”, uma reapresentação de “Anjos De Metal” (na versão presente em Irmandade interplanetária), a cover “Jardim Das Acácias” (de Zé Ramalho, que participa do álbum cantando em “Passos Do Mundo”) e o poema musicado “Ubiqüidade”, de Manuel Bandeira.

O lançamento foi recebido com críticas positivas, saudando a iniciativa de Maltz e ressaltando que as canções tratavam explicitamente de temas espiritualistas sem incorrer no proselitismo religioso.

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Carlos Maltz: dos Engenheiros do Hawaii à carreira solo, passando pela Irmandade Interplanetária, cantando que todos os humanos são manos.

Uma das melhores faixas do álbum – na opinião deste que escutou o disco até cansar – é “Quase Uma Oração”, que conta com a participação ativa de Gessinger, cantando e tocando baixo e guitarra. A obra (parceria de Maltz e Marcus Melgar) tem uma sonoridade oitentista, pós-punk, quase gótica. Já a letra, bem sacada, se desenvolve a partir de um conjunto de hipóteses a respeito de Deus: “Pode estar aqui do lado / Num quarto de motel / Pode ser aquele mendigo / Dormindo embaixo do céu”.

O refrão é marcante, sendo cantado em dueto pelos ex-integrantes dos Engenheiros, com uma citação à oração de São Francisco de Assis: “Muito longe daqui / Alguém está cantando / Em silêncio e só / É quase uma oração / ‘Senhor, fazei de mim um instrumento…'”.

O mais interessante é a forma como, após o refrão, a repetição dos versos iniciais promove seu embaralhamento, num procedimento muito próximo ao que Chico Buarque empregou em “Construção”. Abaixo, ilustro com cores as duas partes da canção:

Pode ser a chuva que cai
Sobre os automóveis
Da Praça da Bandeira
Podem ser as ondas do mar
Furiosamente
Lambendo toda a areia
Pode ser a prostituta
Que você não beijou
Pode ser a força mais bruta
Que a fome despertou
Pode ser a lágrima
De uma borboleta
Pode ser a borboleta
Podem ser os átomos
De uma bomba H
Sobre Bombaín
[…]
Podem ser as ondas do mar
Sobre os automóveis
Da Praça da Bandeira
Podem ser os átomos
De uma prostituta
Que a fome despertou

Como disse, esse procedimento não é exatamente original no âmbito da canção popular, pois já havia sido proposto pelo menos 30 anos antes por Chico. O próprio Humberto Gessinger já havia operado algo semelhante, um pouco antes do lançamento de Farinha do mesmo saco, na antologia Melopéia: sonetos musicados (2001). Nesse álbum, 23 sonetos do poeta-marginal Glauco Mattoso (colunista da Carta capital por muito tempo) recebem interpretações musicais de artistas variadíssimos. Coube a Gessinger defender o soneto “Revista”, que você pode ouvir abaixo, a partir do instante 4’05”:

Abaixo, transcrevo o soneto, conforme cantado por Gessinger na gravação, ressaltando a inclusão de uma última quadra (em parênteses) com diversas palavras e expressões já cantadas nas estrofes regulares:

Na capa, algum palhaço de gravata
Pivô dum novo escândalo bancário
Na entrada, uma entrevista do Romário
Que ao gênio se compara, por bravata

Encarte colorido auto-retrata
O fútil bastidor publicitário
Embora o texto esbanje erro primário,
Vem só um rodapezinho como errata

A página de esporte é defasada
Fofoca é uma coluna concorrida
O artigo financeiro não diz nada

Nas fotos, só mulheres de má vida.
Resenha literária é marmelada.
Cartum sem graça e a josta já está lida.

(Na capa, algum palhaço autoritário
Rodapé publicitário auto-retrata
Fútil entrevista por bravata
Ao gênio se compara, o otário)


Faz todo o sentido que Farinha do mesmo saco traga “Quase Uma Oração” e “Ubiqüidade”, já que ambas são obras panteístas. Com efeito, os versos de Bandeira, cantados por Maltz, também tratam de enxergar Deus em todos os fenômenos e objetos, nas mais variadas escalas: “Estás em tudo que penso, / Estás em quanto imagino; / Estás no horizonte imenso, / Estás no grão pequenino”.

Vale a pena escutar a forma singela como o ex-baterista dos Engenheiros cantou o poema:

Curiosamente, esses versos já haviam aparecido anteriormente em outro disco: em 1978, “Ubiqüidade” foi musicado como “Plenitude”, faixa do incrível Respire fundo de Walter Franco (sobre o qual já falamos neste blog, precisamente, em seu terceiro post). De fato, prefiro-a à versão de Maltz, e veja se você concorda:

3 comentários

    1. Pessoalmente, sempre me identifiquei com essa visão panteísta. Meu afastamento do espiritismo veio também em decorrência disso, já que a doutrina de Kardec parece favorecer a crença em um Deus pessoal. Ainda não me resolvi perfeitamente quanto a isso, pois tenho um lado materialista que me puxa, no mínimo, para um teísmo agnóstico. De toda forma, gosto muito de olhar para as árvores e penso que, se Deus tiver uma imagem, é a de uma copa frondosa sob um caule robusto.

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      1. O Kardec pode ser,mas dentro do espiritismo há abordagens que vai por esse caminho,não existe unidade de pensamento dentro da doutrina.É tudo uma questão de evolução e capacidade de entendimento,o próprio Kardec dizia que o espiritismo estava revelando uma ”religião” que está na natureza,de qualquer forma eu tenho o meu ”espiritismo-particular”,o meu ”panteísmo” não elimina a ideia de uma ”origem” de tudo.

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