75. Skank: “Sem Terra”

Tenente Gama estará na barra do Brooklin atento
Zé da Navalha na boca do rio Urutu
Quatro patrulhas vão cobrindo os quatrorizonte
Nego DJ Adílio leva o rádio
Aurili bon bonga
A cobra vai pular
Aurili bon bonga
Permiso, êêêêêê!


O samba poconé, terceiro álbum dos mineiros Skank, foi o primeiro disco que ganhei, ainda no ano de lançamento, 1996. “Garota Nacional” tocou de Norte a Sul e eu tinha gravado a faixa numa fitinha. Ouvia tanto que não teve jeito: meu pai acabou comprando o CD, que foi ouvido até, literalmente, ficar gasto – como se fosse um LP.

Eram 11 canções que eu sabia de cor e salteado, escutando praticamente todos os dias. Confesso que não gostava de uma, e apenas uma: “Eu Disse A Ela”. Mas já fizemos as pazes! As demais faixas embalaram e marcaram a virada para 1997 e o começo da adolescência.

Depois, consegui emprestar o Calango de um colega do karatê, Rafael, que recebeu minha cópia d’O samba poconé. Pois é, era assim que se ouvia música naquele tempo. Os CDs ficavam algumas semanas emprestados, até tomarmos vergonha na cara e os gravarmos em cassete, e aí eram devolvidos.

Nesse processo, me apaixonei pelo Calango – e só fui obter minha própria cópia bem recentemente, por volta de 2015 -, mas minha memória afetiva elege o disco de 1996 como a maior obra do Skank.

Curiosamente, aquele que foi justamente meu primeiro disquinho, uma relíquia a ser preservada para todo o sempre, já não está comigo. Em 1999, emprestei ao bom amigo Guilherme Pisanelli. Ele ficou tanto tempo com o álbum que precisei fazer a proposta:

– Cabeção, você já tá com o CD do Skank há meses… quer comprá-lo de mim?

A resposta veio em uma nota de dez reais, instantaneamente tirada da carteira e oferecida a mim, num dos corredores da Escola Estadual Jesuíno de Arruda. (Coisa admirável, pois que criança andava com dez mangos na carteira em 1999?) Nunca mais vi meu primeiro CD, e nenhum dinheiro conseguirá reavê-lo: meu chapa Guilherme se foi prematuramente em 2014.

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Skank: mineiros autores de títulos obrigatórios em qualquer discoteca, não só de bandas dos anos 1990, mas da canção popular brasileira em geral.

“Sem Terra”, a canção de hoje, é uma das três faixas de O samba poconé em que o cantor francês Manu Chao participa, ao lado de “Zé Trindade” e “Los Pretos”.

A obra tem muitas das assinaturas do Skank: letras com onomatopeias enigmáticas (“Aurili bon bonga”, “Aurilibilim”), regionalismos/neologismos (“quatrorizonte”, “pitimbam, negarfam”, “teletrônico”, “quebratabaque”), uma boa combinação de batidas dançantes eletrônicas com sons mais roqueiros, efeitos e metais, muitos metais – estes, arranjados por Chico Amaral, o saxofonista que acompanhava a banda e compunha praticamente todas as canções ao lado do vocalista Samuel Rosa.

Hoje, com a crescente criminalização dos movimentos sociais, falar em “sem-terra”, em certos contextos, pode disparar olhares de reprovação, se não outras reações piores. Em 1996, no entanto, o Movimento dos Sem Terra experimentava uma exposição nunca antes recebida, inclusive protagonizando um núcleo da novela global O rei do gado. Jackson Antunes encarnou o líder do movimento, Regino – uma clara alusão a José Rainha Jr., que liderava o movimento na vida real. Essa exposição talvez tenha sido motivada, por sua vez, pelo Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 sem-terra foram assassinados numa ação policial.

Se bem me lembro, o disco do Skank antecedeu a exposição do MST na Rede Globo e, ao que parece, “Sem Terra” foi composta previamente ao evento em Eldorado. Isso é afirmado numa reportagem de Marcelo Plasse para a Folha de S. Paulo, intitulada justamente “Skank compõe ‘Sem-Terra’ antes de massacre”.  A matéria, prévia ao lançamento de O samba poconé, traz alguns detalhes sobre a gravação do álbum, e destaca a faixa aqui tematizada:

Ainda sem nome, o terceiro disco do Skank sai em julho, mas já rendeu um hit para as rádios: “Garota Nacional”, que começou a tocar (muito) há duas semanas.
O que deu para ouvir, no estúdio Mosh, em São Paulo, onde a banda gravou até a semana passada -antes de embarcar para a mixagem em Nova York-, assinala um disco superior ao “milionário” álbum “Calango”, em especial uma música sobre os sem-terra, que o vocalista Samuel fez questão de mostrar, com os olhos brilhando de orgulho.
Apesar de o vocal não ser o definitivo e ainda faltar a mixagem final, “Sem Terra” (nome provisório) talvez seja a melhor música que o Skank já fez, com metais de soul, batida acelerada e arranjo de dancehall.
“A gente está mais atento à qualidade sonora e em ousar mais do que no disco anterior”, explica Samuel, sem mencionar a menor preocupação com o sucesso.

De qualquer forma, a canção pode ser lida como trazendo os bastidores de uma operação de caça aos militantes do movimento social. Por isso os neologismos, que soam como mensagens cifradas, junto com diversos codinomes (Tenente Gama, Zé da Navalha, DJ Atílio), como que organizando uma operação de emboscada.

Por outro lado, “Sem Terra” pode ser interpretada como uma denúncia à exploração dos despossuídos em geral – daí a necessária participação de Manu Chao que, no mesmo disco, também ajudara a denunciar o racismo em “Los Pretos”. Curiosamente, “Sem Terra” também sugere um conflito racial – uma das marcas mais negadas da desigualdade brasileira – ao contrapor o “colono branco” a quem “Bate o bongô, drum machine, bate o xequerê / Batecumã nego véi de guerra, / […] Quebratabaque o atraso, o quebranto”.

Em seu sítio, Chico Amaral assim descreve a faixa: “letra política psicodélica. Grande participação de Manu”. Faltou especificar que tipo de participação é essa. O ex-cantor do Mano Negra aparece nas pontes, entoando versos em francês: “C’est la vie, c’est la vie, c’est la vie aujourd’hui / Oh, c’est le votre ass-assassin qui vous mâche, qui vous prend / Puis surtout, mes amis, quand ça tape moi je m’éteins / Mais c’est la vie, c’est la vie, c’est la vie aujourd’hui / Oh, c’est le votre ass-assassin qui vous mâche, qui vous prend / Mes amis, c’est la vie, c’est la vie aujourd’hui”.

Mais tarde, alguns desses versos seriam incorporados a uma composição do próprio Manu, “La Valse À Sale Temps”, do álbum Sibérie m’était contéee (2004):


“Sem Terra” foi reconstruída por André Abujamra, numa espécie de cover/remix presente no tributo Dois rios (2017), produzido e idealizado por Pedro Ferreira. Você pode ler mais sobre o tributo, e conferir outras versões, no Scream & Yell. Ouça a versão de Abujamra:

Em 2018, o Skank iniciou uma turnê que homenagearia seus três primeiros lançamentos. A turnê originou o projeto Os três primeiros, e “Sem Terra” foi incluída no bloco referente a O samba poconé. Ótima versão ao vivo… diria até definitiva. Quem canta as partes em francês, dessa vez, são o tecladista Henrique Portugal e o baixista Lelo Zaneti. Por sua vez, o baterista Haroldo Ferreti segura bem a onda e imprime peso ao andamento. Confira:

Agora, vamos falar de raridades.

Não deixe de escutar a versão demo da canção, presente na edição comemorativa de O samba poconé, lançada em 2016. Aqui, o som é compreensivelmente tosco (e desprovido das intervenções de Manu Chao), mas a presença destacada das guitarras de Samuel já vale a audição:

Mais tosca ainda é a versão gravada de um ensaio da banda, também disponibilizada na edição de 20 anos de O samba poconé. Perceba que Samuel ainda está se habituando à métrica da letra. Por outro lado, o instrumental entrega que a canção, em seus primórdios, caminhava para uma espécie de baião ska, contando até com alguns riffs de guitarra, ao final, explorando sonoridades mais nordestinas:

6 comentários

  1. Skank é daquelas bandas que você ouve muito e dificilmente enjoa. As músicas sempre embalam ótimas lembranças do passado.

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    1. É uma canção muito boa, né? Fiquei feliz que foi regravada no projeto de homenagem aos três primeiros álbuns. Também não sei se é minha favorita, mas certamente está no Top10!
      Grato pela visita e pelo comentário.

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