164. Humberto Gessinger: “Mapas Do Acaso”

Não peça perdão, a culpa não é sua
Estamos no mesmo barco e ele ainda flutua
Não perca a razão, ela já não é sua
Onda após onda, o barco ainda flutua
Ao sabor do acaso
Apesar dos pesares
Ao sabor do acaso… flutua


No finalzinho de 2018, Humberto Gessinger surpreendeu os antigos fãs dos Engenheiros do Hawaii com um lançamento curioso: em comemoração aos 25 anos do segundo disco ao vivo da banda gaúcha que liderou, Filmes de guerra, canções de amor (1993), o compositor agrupou as quatro canções inéditas do álbum, mais duas de suas versões demo, num EP intitulado Canções de amor, filmes de guerra.

Enquanto que no álbum original as faixas possuem uma ambiência semi-acústica (com exceção para a coda de “Às Vezes Nunca”), as releituras mesclaram uma formação elétrica e roqueira (“Mapas Do Acaso” e “Às Vezes Nunca”) e uma acústica com toques de regionalismo gaudério (“Quanto Vale A Vida” e “Realidade Virtual”).

“Mapas Do Acaso”, a canção de hoje, acabou se tornando um interessante caso de canção que, com o tempo, foi se eletrificando. Demonstremos.


Para alguns, Filmes de guerra, canções de amor foi o álbum inaugural da onda de discos acústicos que varreu o pop-rock nacional a partir de meados dos anos 1990. Porém, ao contrário da maior parte dessas produções, especialmente aquelas que receberam o selo do Acústico MTV, o disco dos Engenheiros do Hawaii não trazia violões: apenas guitarras com timbres limpos, percussões eventuais, arranjos orquestrais em três faixas e muita, mas muita sofisticação musical.

Todas as oito canções regravadas foram arranjadas de forma a se tornarem praticamente irreconhecíveis: “Além Dos Outdoors”, um rock oitentista, e “Pra Entender”, um hard-rock, ganharam atmosferas que oscilam entre rockabilly propositadamente antiquado dos Stray Cats e um estilo explicitamente jazzista, com passagens blueseiras aqui e ali; “Crônica” teve seu refrão reggae convertido num eficiente xote; “Pra Ser Sincero”, tocada ao acordeom pelo próprio Gessinger, começa como um bolero e cresce como um tango; “Muros & Grades”, um pop-rock com introdução chupada de “Back In The Chain Gang” dos Pretenders, virou uma bossa-nova; a dry-progressiva “Alívio Imediato” perdeu o peso e ganhou nova letra; e por fim, o rock “Ando Só” e as duas partes do progressivão “O Exército De Um Homem Só” foram fundidas numa suíte orquestrada luxuosíssima.

As inéditas também possuíam suas peculiaridades: “Quanto Vale A Vida” é uma folk-song dylanesca, mas com um indispensável tempero brasileiro; “Às Vezes Nunca” começa como jazz, evolui para um xote e finda heavy metal; “Realidade Virtual” é um gospel existencialista; e a canção de hoje, “Mapas Do Acaso”, abre o álbum como um curioso cruzamento entre a bossa e o rock progressivo, temperado com pitadas de Clube da Esquina – não à toa, o arranjo orquestral é assinado por Wagner Tiso.

A guitarra de Augusto Licks está simplesmente tinindo, especialmente no inspirado solo, mas traz, desde a introdução, soluções sutis que empregam diferentes técnicas e efeitos. A harmonia, que mobiliza elementos pouco comuns nas composições dos Engenheiros até então, envolve acordes menores com sétima, um tenso D7/9 e muitas sétimas maiores (Dmaj7, Cmaj7 e Bmaj7). O refrão – com suas inquietantes dúvidas: “Âncora, vela / Qual me leva? / Qual me prende? / Mapas e bússola / Sorte e acaso / Quem sabe / Do que depende?” – emprega os dois únicos acordes maiores sem notas alteradas (Lá Maior e Sol Maior) para resolver o suspense gerado pela sequência Em7/Dmaj7.

Em meio a essa dança imprevisível das notas, a letra também baila, como que ao sabor das ondas nela mencionadas. O tema é o movimento e o deixar-se levar, mas considerando que Filmes de guerra, canções de amor foi o último suspiro da formação clássica da banda (Gessinger, Licks e o baterista Carlos Maltz), os versos iniciais podem ser interpretados como um estado da arte da situação do conjunto em seu momento mais turbulento: “Estamos no mesmo barco e ele ainda flutua […] / Ao sabor do acaso / Apesar dos pesares”.

Confira a primeira versão de “Mapas Do Acaso”, conforme o registro do vídeo oficial de Filmes de guerra, canções de amor:

Duas observações. Primeiro, que a versão acima é diferente da que consta no CD, que trouxe um take mais certeiro, com um solo mais bem executado por Licks. Em segundo lugar, nota-se que a harmonia de “Mapas Do Acaso” foi herdada da versão demo da canção “A Conquista Do Espaço”, integrante da suíte progressiva que encerra o álbum anterior, Gessinger, Licks & Maltz (1992):

Era 1994 e o trio GLM se desfez. Acabaram os Engenheiros do Hawaii? Sim e não. Gessinger convidou um antigo colega de Porto Alegre, Ricardo Horn, para substituir Licks nas guitarras. Maltz permaneceu e o conjunto ainda recebeu o reforço de dois grandes músicos: o guitarrista Fernando Deluqui, então ex-RPM; e o tecladista Paolo Casarin. Essa formação legou um único álbum, o peculiaríssimo Simples de coração (1995), que lembra muito pouco qualquer período dos Engenheiros, anterior ou posterior. É um belo apanhado de canções, sem dúvidas, mas a ausência de Licks incomodou – e ainda incomoda – muita gente.

Curiosamente, na transição entre o trio GLM e o trio “GHornM”, os Engenheiros divulgaram um clipe para “Mapas Do Acaso”, trazendo imagens despojadas dos músicos, enquanto a trilha traz uma versão diferente da registrada originalmente. Apesar da presença de Horn e Maltz no vídeo, é apenas Gessinger quem toca a canção – desdobrando-se nas guitarras, no baixo, nos teclados e numa programação de bateria eletrônica meio mixuruca. De toda forma, o vídeo é surpreendentemente bem produzido, apesar de simples (de coração). Além disso, essa versão de “Mapas Do Acaso” acabou se tornando a favorita de muitos fãs, talvez por conta da nova passagem roqueira que oferece um interessante contraponto ao clima etéreo e eletrônico do início da gravação:

Por fim, a versão de Canções de amor, filmes de guerra investe em ambiências novas, com poucos efeitos eletrônicos, ancorando-se nas limitações do trio baixo-bateria-guitarra. Afinal, o registro foi pensado para ser reproduzido de forma fiel nos shows, dispensando os teclados e até tracks sobrepostos de guitarra: ouve-se apenas o guitarrista Felipe Rotta explorando uma sonoridade que lembra os timbres de The Edge, do U2; Gessinger perfazendo acordes no baixo da introdução, sob um efeito de wah-wah, para depois prosseguir com suas famosas linhas melódicas no decorrer da canção; e o baterista Rafa Bisogno sustentando um pulso firme e pesado.

Se não me engano, foi em sua autobiografia (Pra ser sincero: 123 variações sobre um mesmo tema. Caxias do Sul: Belas Letras, 2009) que Gessinger externou o entendimento de que as canções são organismos vivos: nascem, crescem e se desenvolvem (mas espero que não morram!). “Mapas Do Acaso” é a prova de que, de fato, uma canção pode assumir diferentes formas sem perder sua identidade, exatamente como um ser que atravessa diversos períodos de seu desenvolvimento biológico.

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Humberto Gessinger: por acaso ou não, fazendo das canções organismos em constante evolução.

5 comentários

  1. É mais uma que desconhecia.Por mais musical que uma pessoa seja,ela vai morrer sem conhecer boa parte das canções que existem.

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    1. Essa é a dor de viver, Ademar! Não vai dar tempo de ler tantas obras, ou escutar tantas boas canções, nessa vidinha que passa voando. Por isso o ensinamento do meu amigo Ernesto Magrão é sempre válido: não disperdicemos tempo e sejamos criteriosos.

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